sexta-feira, junho 08, 2007

A SEXUALIDADE INFANTIL - TEORIA E DISCURSO

Sigmund Freud, na obra Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, além de ampliar a definição de sexualidade para abranger outras formas de prazer, e de fazer ligações entre as neuroses e perversões, teorizou acerca da sexualidade infantil, delimitando a mudança da atividade erótica desde o nascimento até a puberdade. Ele percebeu que, apesar de os bebês serem capazes de uma atividade auto-erótica desde o nascimento, as primeiras manifestações da sexualidade infantil se apresentam como não-sexuais, e sim como funções corporais como amamentação e controle fecal e urinário.
Para Freud, os estágios de desenvolvimento psicossexuais iniciam com a fase oral, passando para a fase anal e dessa para a fase fálica, uma se construindo através do aprendizado da fase anterior. Segundo Kaplan, Sadock e Grebb (2003, p.237)
O estágio oral ocupa aproximadamente os primeiros 18 meses de vida, centraliza-se na boca e lábios e se manifesta por mastigar, morder e sugar. A atividade erótica dominante do estágio anal, que se estende de 1 a 3 anos de idade, focaliza-se inicialmente na micção como a fonte de atividade erótica. Freud sugeriu que a atividade erótica fálica nos meninos seria um estágio preliminar que leva à atividade genital adulta. Enquanto o pênis permanece como o principal órgão sexual durante todo o desenvolvimento psicossexual adulto, Freud postulou que a mulher tinha duas zonas erotogênicas principais, a vagina e o clitóris. Ele supunha ser o clitóris o principal foco eretogênico durante o período genital infantil, mas que esta primazia erótica mudaria para a vagina após a puberdade.

Estudos sobre a sexualidade humana questionaram, subseqüentemente, a validação dessa distinção. Na concepção foucaultiana, a sexualidade seria um “dispositivo histórico” (1990a) isto é, uma invenção social, já que se forma historicamente e a partir de vários discursos sobre o sexo. Tais discursos significam, nas palavras de Guacira Lopes Louro (2001, p.12), “discursos que regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem ‘verdades’”. Assim, para Foucault, é no âmbito da cultura e da história – e não no âmbito psicológico, segundo a teoria freudiana – que se definem as identidades sociais e a própria sexualidade da criança.
Este breve histórico ajuda a situar o ponto de onde parto em minha reflexão. Mais que investigar os vários significados da sexualidade infantil e as divergências teóricas em torno da mesma, estou interessada, como falei anteriormente, em perceber como os sentidos a respeito desta mesma sexualidade são construídos a partir de um grupo específico – os profissionais de educação do município de Picuí...
Para entender melhor esta discussão, recordo a seguinte situação vivenciada no Centro de Educação Infantil no qual atendo, que envolve duas crianças – um menino e uma menina, de seis anos, ambos alunos do Jardim II. Na oportunidade, ao ser chamada àquela instituição com urgência, observei um certo constrangimento por parte de sua diretora ao relatar o motivo:
[...] essas duas crianças são muito amigas, na verdade não desgrudam um minuto, seja dentro ou fora da sala de aula; já chamei as mães para conversar e elas disseram que são vizinhas e que as crianças desde cedo são amigas e que lá também é como aqui, compartilham de tudo o tempo todo. Até aí tudo bem, o problema é que essa amizade está indo longe demais, porque essa semana pegamos os dois se beijando, e na boca, na hora do recreio. Só você vendo a situação; ninguém sabia como agir, por isso lhe convidamos pra pedir ajuda.

O comportamento das crianças, na fala da diretora, era visto como algo repulsivo, sendo um motivo de preocupação por parte da Escola, no sentido de influenciar negativamente as outras crianças. Sua preocupação com o acontecimento, além do medo e do pensamento dos demais funcionários, revelou já no nosso primeiro contato, a concepção da mesma e dos demais funcionários acerca da sexualidade infantil. O discurso também revela certa preocupação pela reação dos pais das crianças ao tomarem conhecimento do fato.
Após ouvir o desabafo da diretora, conversei bastante a respeito desse comportamento das crianças, sobre as questões todas que envolvem essa reação, desde nossas características pessoais até a concepção histórica da sexualidade e da necessidade de nos prepararmos para o enfrentamento dessas situações no ambiente escolar. Nesse ínterim, percebi suas concepções sobre o assunto totalmente ligadas às suas convicções religiosas e, mesmo com todas as orientações dadas, ela ainda manteve-se bastante reticente, optando principalmente por cortar totalmente o assunto, e até mesmo falando em transferir as crianças de escola, o que a equipe pedagógica não concordou.
Ainda sobre o assunto, convidamos os pais das duas crianças (só as mães compareceram) e, na entrevista, foi revelado o mesmo comportamento da Escola por parte das crianças que, segundo as genitoras, tal comportamento é ensinado pelo pai da menina que, desempregado, permanece em casa com a criança enquanto a mãe trabalha e nessa convivência, termina estimulando a erotização precoce na menina. Tentamos um contato com o esse pai, porém, nesse período, o mesmo foi preso por furto, o que inviabilizou o contato. Feitos os contatos possíveis, chegou a hora de conversar com toda a equipe da Escola acerca do comportamento em tela, visto anteriormente como algo “anormal” e “incompatível” com o ambiente e as colocações são, inicialmente, sempre em torno da família, “culpando-a” pela “má educação”, e nunca abordando o tema como uma curiosidade natural das crianças acerca da sua sexualidade.
Deborah Britzman (apud Louro: 2001, p.93) lembra que Freud, em seus primeiros estudos, observou que as crianças são curiosas a respeito de como produzir prazer a partir de seus corpos; que as crianças formulam “teorias” e fazem questionamentos tais como: por que as meninas são diferentes dos meninos? De onde vêm os bebês? A esse respeito, Britzman diz que
A idéia de que possa haver uma relação entre sexualidade e curiosidade [...] nos permite questionar tanto os limites da sexualidade (naquilo que é eufemisticamente chamado de ‘educação sexual’) quanto seu além: as transgressões, os prazeres e as inexauríveis sensualidades.

Assim, ainda segundo Britzman, para que haja um diálogo franco no meio escolar com relação à sexualidade da criança, é necessário que os educadores e as educadoras também se tornem curiosos sobre suas próprias concepções sobre o sexo. E, fazendo isso, [...] se tornem abertos também para as explorações e as curiosidades de outros relativamente à liberdade do ‘domínio imaginário’” (apud Louro: 2001, p.109).
O exemplo discutido aqui demonstra que não é possível abordar adequadamente questões relacionadas à sexualidade infantil sem nos remetermos à discussão sobre a família e a escola. A partir da concepção histórica, surge a necessidade de falarmos, de forma mais detalhada, do papel da família na formação da identidade sexual do indivíduo e de como se processa o desenvolvimento emocional dos filhos. Também não poderia ficar de fora deste resgate histórico, o papel da escola na formação da identidade sexual da criança. Estes temas serão abordados a seguir.

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