sexta-feira, junho 08, 2007

ASPECTOS HISTÓRICOS

Abuso sexual de seres humanos pelos seus semelhantes aparece constantemente na história da humanidade; seu sentido não obstante, modificou-se através dos tempos, principalmente quando se trata de crianças tendo, pois, origens que vão do crescente movimento dos direitos da criança e do maior conhecimento e preocupação com a saúde, principalmente a sua saúde mental. A própria evolução histórica demonstra que violência e infância estiveram e ainda estão bem próximas entre si, não só com relação a crianças desamparadas, mas também no interior das famílias.
Para entendermos o fenômeno do abuso sexual da criança, necessário se faz, em primeiro lugar, lembrar o papel desta como personagem, ao longo da história, já que só se pode falar de abuso sexual a partir do momento em que a criança passou a ser vista como sujeito portadora de direitos. Até meados do século XIX, a criança era tratada como mero objeto; assim, por exemplo, na Antiguidade, os pais e o Estado decidiam sobre a vida e a morte das crianças, sendo comum a prática do infanticídio; em Roma, o pátrio poder representava verdadeiro direito de propriedade sobre a pessoa dos filhos, os quais, ao lado da terra e dos escravos, pertenciam aos seus pais. Sem falar de outros povos, como o hebreu, para quem a vida da criança valia menos do que a do adulto. No Antigo Testamento, há uma passagem em que esse povo passa por sérias dificuldades e cogita em saciar a fome com crianças (II Reis 6: 26-29).
[1] Com o advento do cristianismo e a adoção de seus preceitos, o poder paterno começou a ser atenuado no Ocidente, através da previsão legal de punições para os casos de excessos.
Durante a Idade Média, as leis européias trouxeram algumas evoluções para a proteção da criança, mas dando ênfase principalmente aos bens desta. No entanto, a taxa de mortalidade infantil durante este período permaneceu muito alta. Ajuriaguerra diz que
o comportamento dos pais em relação aos filhos se alterou de um modo que denomina “infanticida”, para um “modo de abandono”, ou seja, a opção pela morte foi substituída pela negligência no trato com as crianças e, por isso, as taxas de mortalidade não sofreram uma redução significativa (apud RANGEL: 2001, p.26).

A partir do século XVIII, houve uma grande alteração, em termos de Europa, na visão que se tinha da infância. Patrícia Calmon Rangel lembra que
As publicações e estudos que tratam do tema se tornam comuns; surge o higienismo, que censura o uso do enfaixamento e apregoa o aleitamento materno (...); a pediatria, como ciência médica voltada para as especificidades da infância, que até então eram consideradas questões menores, exclusivas das mulheres; a escola, como local apropriado para a aprendizagem e, finalmente, já no século XX, a psicanálise, que vem defender os desejos da criança, preocupada com sua formação psicológica (2001, p.31).

Essa mudança de atitude em relação à criança se deveu a vários fatores, dentre os quais se destacam as guerras e epidemias, que dizimavam grande parte dos homens jovens; além disso, o capitalismo florescente necessitava de mão-de-obra, e milhares de postos de trabalho foram ocupados por crianças, transformando-as em investimento lucrativo para os pais. Porém, uma das principais causas dessa imposição de limites aos direitos dos pais sobre a pessoa dos filhos, com o advento da Revolução Francesa aconteceu, no dizer de Rangel, devido ao “interesse social sobre a criança, como adulto em potencial, que tem suplantado, gradativamente, o interesse na sacralização da instituição familiar e da figura paterna” (2001, p.32). No início do século XX, a psicanálise ficou conhecida do grande público, propagando uma nova maneira de tratar a criança, vendo-a não como objeto, mas como sujeito e dando atenção especial aos seus desejos
[2].
Em 1924, a Declaração de Genebra dispôs sobre a necessidade de se assegurar às crianças proteção especial e, a partir daí este princípio tornou-se recorrente em diversos tratados internacionais, como na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto de São José – Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (1969). Porém, a partir da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989), em que todas as leis anteriores acerca da criança foram compiladas, foram inseridas nesse documento recomendações que serviriam como referência para a regulamentação dos direitos da criança em todo o mundo.
[3]
[1] Passando o Rei de Israel pelo muro, gritou-lhe uma mulher: acode-me, ó rei, meu senhor. (...) Perguntou-lhe o rei: que tens? Respondeu ela: esta mulher me disse: Dá teu filho para que hoje o comamos, e amanhã comeremos o meu. Cozemos, pois, o meu filho, e o comemos; mas, dizendo-lhe eu ao outro dia: dá o teu filho, para que o comamos, ela o escondeu. (II Reis 6: 26-29).
[2] Para compreender melhor a forma como a criança foi vista no mundo ocidental, ver ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1981.
[3] Em termos de Brasil, falaremos em tópico próprio acerca da legislação específica relativa aos direitos da criança.

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