sexta-feira, junho 08, 2007

Lidando com a morte

A missão tradicional do médico é aliviar o sofrimento humano; se puder curar, cura; se não puder curar, alivia; se não puder aliviar, consola.
Ao pensar na morte, seja a simples idéia da própria morte ou a expectativa mais do que certa de morrer um dia, seja a idéia estimulada pela morte de um ente querido ou mesmo de alguém desconhecido, o ser humano maduro normalmente é tomado por sentimentos e reflexões. As pessoas que se regozijam em dizer que não pensam na morte, normalmente têm uma relação mais sofrível ainda com esse assunto, tão sofrível que nem se permitem pensar a respeito. Esses pensamentos, ou melhor, os sentimentos determinados por esses pensamentos variam muito entre as diferentes pessoas, também variam muito entre diferentes momentos de uma mesma pessoa. Podem ser sentimentos confusos e dolorosos, serenos e plácidos, raivosos e rancorosos, racionais e lógicos, e assim por diante. Enfim, são sentimentos das mais variadas tonalidades. Isso tudo pode significar que a morte, em si, pode representar algo totalmente diferente entre as diferentes pessoas, e totalmente diferente em diferentes épocas da vida de uma mesma pessoa.
O Eu diante da Morte
De um modo geral, descontando as defesas das reflexões zen, das meditações transcendentais e de toda sorte de subterfúgios do medo e do temor do nada, a idéia da morte nos remete aos sentimentos de perda, portanto, em tese, nos desperta sentimentos dolorosos. Trata-se de uma espécie de dor psíquica, a qual muitas vezes acaba também gerando dores físicas, ou criando uma dinâmica incompreensível para quem a vida continua sorrindo. Poderíamos dizer que na Depressão, o tema morte está mais presente, seja o medo dela, seja a vontade de que ela aconteça casualmente ou, mais grave, sob a forma de ideação suicida. De qualquer forma, pensa- se na morte e, como não poderia deixar de ser, acompanha sentimentos dolorosos. Essa é uma dor psíquica, naturalmente movida por sentimentos de tristeza, de finitude, de medo, de abandono, de fragilidade e insegurança. Na espécie humana a dor psíquica diante da morte pode ser considerada fisiológica, mas sua duração, intensidade e resolução vão depender, muito provavelmente, de como a pessoa experimentou a vida. Diz um ditado: " teme mais a morte quem mais temeu a vida". Durante a fase de enfrentamento da morte, o paciente é estimulado a profundas reflexões sobre a própria vida; se lhe foi satisfatória sua trajetória de vida, se houve algum desenvolvimento emocional, se pode criar vínculos afetivos fortes e permanentes, se ele pode auxiliar a outros seres humanos. Orientado psicologicamente (cognitivamente) poderá ser possível que, apesar de doloroso, esse momento possa ter um importante e saudável balanço emocional.
Os 5 Estágios da Dor da Morte
A reação psíquica determinada pela experiência com a morte foi descrita por Elisabeth Kubler-Ross como tendo cinco estágios (Berkowitz, 2001):
Primeiro Estágio: negação e isolamento
A Negação e o Isolamento são mecanismos de defesas temporários do Ego contra a dor psíquica diante da morte. A intensidade e duração desses mecanismos de defesa dependem de como a própria pessoa que sofre e as outras pessoas ao seu redor são capazes de lidar com essa dor. Em geral, a Negação e o Isolamento não persistem por muito tempo.
Segundo Estágio: raiva
Por causa da raiva, que surge devido à impossibilidade do Ego manter a Negação e o Isolamento, os relacionamentos se tornam problemáticos e todo o ambiente é hostilizado pela revolta de quem sabe que vai morrer. Junto com a raiva, também surgem sentimentos de revolta, inveja e ressentimento. Nessa fase, a dor psíquica do enfrentamento da morte se manifesta por atitudes agressivas e de revolta; - porque comigo? A revolta pode assumir proporções quase paranóides; "com tanta gente ruim pra morrer porque eu, eu que sempre fiz o bem, sempre trabalhei e fui honesto "... Transformar a dor psíquica em agressão é, mais ou menos, o que acontece em crianças com depressão. É importante, nesse estágio, haver compreensão dos demais sobre a angústia transformada em raiva na pessoa que sente interrompidas suas atividades de vida pela doença ou pela morte.
Terceiro Estágio: barganha
Havendo deixado de lado a Negação e o Isolamento, "percebendo" que a raiva também não resolveu, a pessoa entra no terceiro estágio; a barganha. A maioria dessas barganhas é feita com Deus e, normalmente, mantidas em segredo. Como dificilmente a pessoa tem alguma coisa a oferecer a Deus, além de sua vida, e como Este parece estar tomando-a, quer a pessoa queira ou não, as barganhas assumem mais as características de súplicas. A pessoa implora que Deus aceite sua "oferta" em troca da vida, como por exemplo, sua promessa de uma vida dedicada à igreja, aos pobres, à caridade ... Na realidade, a barganha é uma tentativa de adiamento. Nessa fase o paciente se mantém sereno, reflexivo e dócil (não se pode barganhar com Deus, ao mesmo tempo em que se hostiliza pessoas).
Quarto Estágio: depressão
A Depressão aparece quando o paciente toma consciência de sua debilidade física, quando já não consegue negar suas condições de doente, quando as perspectivas da morte são claramente sentidas. Evidentemente, trata-se de uma atitude evolutiva; negar não adiantou, agredir e se revoltar também não, fazer barganhas não resolveu. Surge então um sentimento de grande perda. É o sofrimento e a dor psíquica de quem percebe a realidade nua e crua, como ela é realmente, é a consciência plena de que nascemos e morremos sozinhos. Aqui a depressão assume um quadro clínico mais típico e característico; desânimo, desinteresse, apatia, tristeza, choro, etc.
Quinto Estágio: aceitação
Nesse estágio o paciente já não experimenta o desespero e nem nega sua realidade. Esse é um momento de repouso e serenidade antes da longa viagem. É claro que interessa, à psiquiatria e à medicina melhorar a qualidade da morte (como sempre tentou fazer em relação à qualidade da vida), que o paciente alcance esse estágio de aceitação em paz, com dignidade e bem estar emocional. Assim ocorrendo, o processo até a morte pôde ser experimentado em clima de serenidade por parte do paciente e, pelo lado dos que ficam, de conforto, compreensão e colaboração para com o paciente.
A Medicina Paliativa
Paliativo é a qualidade de aliviar, e é o que mais interessa à pessoa que sofre, portanto, quando se fala Medicina Paliativa não se pretende, de forma alguma, atribuir um sentido pejorativo, minimizado ou frugal ao termo. Devemos ter cuidado quando alguém diz... " esse medicamento é APENAS um paliativo", com intenção clara em atribuir alguma conotação pejorativa. No Brasil a Medicina Paliativa ainda caminha a passos lentos mas, no Reino Unido, onde tudo começou, somando-se com a Austrália, USA e Canadá, existem mais de 6.000 centros de Medicina Paliativa, sendo considerada uma especialidade médica e de grande notoriedade. No Brasil, a atuação da Medicina Paliativa, iniciada em 1983 pela Dra. Míriam Martelete no Hospital das Clinicas de Porto Alegre, é ainda praticamente desconhecida pelos médicos brasileiros. Os Cuidados Paliativos são tipos especiais de cuidados destinados a proporcionar bem estar, conforto e suporte aos pacientes e seus familiares nas fases finais de uma enfermidade terminal. Assim, a Medicina Paliativa procura conseguir que os pacientes desfrutem os dias que lhes restam de forma mais consciente possível, livres da dor e com seus sintomas sob controle. Isso tudo é pretendido para que esses pacientes possam viver seus últimos dias com dignidade, em sua casa ou em algum lugar mais parecido possível, rodeados de pessoas que lhes queiram bem. Na realidade, esse tipo de cuidado pode ser realizado em qualquer local onde o paciente se encontra, seja em sua casa, no hospital, em asilos ou instituições semelhantes, etc. Paliativo é um tipo de cuidado médico e multiprofissional aos pacientes cuja doença não responde aos tratamentos curativos. Para a Medicina Paliativa é primordial o controle da dor, de outros sintomas igualmente sofríveis e, até, dos problemas sociais, psicológicos e espirituais. Os Cuidados Paliativos são interdisciplinares e se ocupam do paciente, da família e do entorno social do paciente. Os Cuidados Paliativos não prolongam a vida, nem tampouco aceleram a morte. Eles somente tentam estar presentes e oferecer conhecimentos médicos e psicológicos suficientes para o suporte físico, emocional e espiritual durante a fase terminal e de agonia do paciente, bem como melhorar a maneira de sua família e amigos lidarem com essa questão. Essa área médica objetiva o alívio, a preparação e, conseqüentemente a melhoria das condições de vida dos pacientes com doenças progressivas e irreversíveis como, por exemplo, crônico-degenerativas, incapacitantes e fatais. Atualmente diz respeito mais aos pacientes com câncer, AIDS, pneumopatias, degenerações neuromotoras, doenças metabólicas, congênitas, doença de Alzeheimer, doença de Parkinson, etc, bem como os politraumatizados com lesões irreversíveis. Uma das maiores dificuldades para a Medicina Paliativa ter desenvoltura próxima à de outras especialidades, pode ser o preconceito universal existente em relação às condutas terminais, mais precisamente, em relação à morte.
A qualidade da Vida e da Morte
Na formação do médico, bem como na formação das especialidades, a morte costuma ser abolida do rol de preocupações clínicas. Dificilmente os médicos perguntam, na anamnese, se o paciente tem medo de morrer, pensa em morrer, pensa em suicídio, ou coisas assim. Aliás, nem sequer é perguntado se o paciente está triste, nem sequer como ele ESTÁ... E isso se deve, provavelmente, à total falta de conhecimento sobre o que fazer com a resposta do paciente. Quanto mais avança o conhecimento médico em todos os campos (farmacologia; terapêutica, anestesia, cirurgia, transplantes de órgãos, fertilização humana, genética, imunologia, medicina nuclear, recursos diagnósticos, etc...), quanto mais se desenvolvem tecnologias aplicadas à medicina, mais o médico se distancia da morte. Os protocolos de procedimentos médicos, as normas administrativas da medicina e os rígidos manuais de conduta acabaram por institucionalizar a morte. É comum vermos em livros-texto uma perfeita descrição de determinado quadro clínico, reconhecidamente irreversível e com desfecho fatal, mas nada se fala dos cuidados finais, da atenção familiar e afetiva que o paciente deveria receber nesse momento. Não, fala-se muito em deixá-lo nos centros de terapia intensiva. É objetivo da Medicina Paliativa é a preocupação com a desinstitucionalização da morte, dando ao paciente a possibilidade de escolher permanecer em casa durante sua agonia. A discussão que pretendemos alimentar é, sobretudo, um protesto contra as condições de vida impostas pela medicina moderna aos doentes terminais, subtraindo deles as opções de um morrer menos sofrível. Pensamos que, intervir no paciente terminal em centros de terapia intensiva, quando não objetiva exclusivamente minimizar sofrimentos, pode refletir sentimento de onipotência da medicina sobre a vida, sobre a vida física, como se ela fosse considerada o bem supremo e absoluto, acima da liberdade e da dignidade. O amor pela vida, quando a toma como um fim em si mesma, se transforma em um culto pela vida. A medicina que se preocupa insensivelmente com as "condições vitais", deixando de lado as "qualidades vitais", promove implicitamente esse culto idólatra à vida. Nessas circunstâncias a medicina interfere na fase terminal como se travasse uma luta a todo custo contra a morte e não, como seria preferível, numa luta em defesa do paciente. A maneira de morrer, portanto, não pode ser excluída, absolutamente, do projeto de vida da pessoa. A maneira de morrer também é uma forma de humanizar a vida no seu ocaso, devolvendo-lhe a dignidade perdida.
O Paciente Terminal
O grande desenvolvimento da Medicina nas últimas décadas do século XX, assim como as melhorias inegáveis nas condições de vida, elevaram a expectativa de vida de 34 anos, no começo do século XX, até quase 80 anos no começo do século XXI. Conseqüente ao aumento da perspectiva de vida e ao envelhecimento progressivo das populações, nas últimas décadas está havendo um aumento gradual na prevalência de algumas doenças crônicas e invalidantes. Os avanços conseguidos no tratamento específico do câncer têm permitido um aumento significativo da sobrevivência e da qualidade de vida desses pacientes. Mesmo assim, estima-se atualmente que 25% das mortes sejam devidas ao câncer. Por outro lado, sem nenhuma relação com o envelhecimento da população, a AIDS grassou tenazmente em nossa sociedade, demandando fortes medidas sanitárias. Aqui também, apesar dos avanços nessa área, continua grande o número anual de pacientes terminais produzidos por essa doença. O estado mórbido que chamamos de Doença Terminal se caracteriza por algumas situações clínicas precisamente definidas, as quais se podem relacionar da seguinte forma:
1. Presencia de uma doença em fase avançada, progressiva e incurável.
2. Falta de possibilidades razoáveis de resposta ao tratamento específico.
3. Presença de numerosos problemas ou sintomas intensos, múltiplos, multifatoriais e alternantes.
4. Grande impacto emocional (no paciente e familiares) relacionado à presença ou possibilidade incontestável da morte.
5. Prognóstico de vida inferior a 6 meses.
Os Pacientes Terminais apresentam peculiaridades próprias que o profissional médico deve conhecer. O controle dos sintomas do estado terminal deve ser abordado não só do ponto de vista farmacológico, senão também, do ponto de vista psicológico, social, familiar, espiritual, etc. Nesses pacientes os sintomas costumam ser devidos a diversos fatores. Podem ser decorrentes da própria doença que levou ao estado terminal, podem ser devidos aos tratamentos médicos fortemente agressivos à saúde, da debilidade física geral ou de causas totalmente alheias à doença grave, entre elas, do estado emocional do paciente. Seja qual for a origem dos sintomas e do quadro geral que o paciente apresenta, é necessário explicar, da melhor forma possível, sobre o que está ocorrendo e sobre as possíveis questões que possam estar preocupando. Também a família deve estar sempre bem informada, especialmente quando os cuidados estiverem a cargo dela ( Sánchez, 2000).
A Família na visão Paliativa
De modo geral, exceto as infelizes exceções, o familiar representa mais do que a simples presença de alguém promovendo cuidados ao paciente. O familiar representa alguém que, independente das possibilidades terapêuticas, pode compreender e realizar com carinho difíceis tarefas como, por exemplo, dar banho, às vezes no leito, dar a medicação nas doses e horários certos, preparar e dar uma alimentação adequada, fazer curativos, etc. É claro que os profissionais contratados para essas tarefas poderão fazê-las melhor, tecnicamente, mas importa muito a maneira e o carinho com que são realizadas. Havendo a qualidade afetiva dos cuidados, outros cuidadores, além da família podem ser envolvidos no Tratamento Paliativo. Um dos propósitos da Medicina Paliativa é orientar a família para que ela seja um bom suporte de auxílio ao paciente terminal, priorizando sempre as condições necessárias para manter o paciente em casa onde, seguramente, terá uma qualidade de vida melhor. Em casa ele estará cercado de carinho e atenção, o que pode minimizar o seu medo de morrer. Para a desejável participação familiar plena devem ser identificados, dentro da dinâmica familiar, os eventuais pontos de conflitos, anteriores e posteriores ao diagnóstico da doença.

Ballone GJ - Lidando com a Morte
In. PsiqWeb Psiquiatria Geral, Internet, 2002
Disponível em <http://sites.uol.com.br/gballone/voce/ postrauma.html>

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