sexta-feira, junho 08, 2007

Lidando com a morte

A missão tradicional do médico é aliviar o sofrimento humano; se puder curar, cura; se não puder curar, alivia; se não puder aliviar, consola.
Ao pensar na morte, seja a simples idéia da própria morte ou a expectativa mais do que certa de morrer um dia, seja a idéia estimulada pela morte de um ente querido ou mesmo de alguém desconhecido, o ser humano maduro normalmente é tomado por sentimentos e reflexões. As pessoas que se regozijam em dizer que não pensam na morte, normalmente têm uma relação mais sofrível ainda com esse assunto, tão sofrível que nem se permitem pensar a respeito. Esses pensamentos, ou melhor, os sentimentos determinados por esses pensamentos variam muito entre as diferentes pessoas, também variam muito entre diferentes momentos de uma mesma pessoa. Podem ser sentimentos confusos e dolorosos, serenos e plácidos, raivosos e rancorosos, racionais e lógicos, e assim por diante. Enfim, são sentimentos das mais variadas tonalidades. Isso tudo pode significar que a morte, em si, pode representar algo totalmente diferente entre as diferentes pessoas, e totalmente diferente em diferentes épocas da vida de uma mesma pessoa.
O Eu diante da Morte
De um modo geral, descontando as defesas das reflexões zen, das meditações transcendentais e de toda sorte de subterfúgios do medo e do temor do nada, a idéia da morte nos remete aos sentimentos de perda, portanto, em tese, nos desperta sentimentos dolorosos. Trata-se de uma espécie de dor psíquica, a qual muitas vezes acaba também gerando dores físicas, ou criando uma dinâmica incompreensível para quem a vida continua sorrindo. Poderíamos dizer que na Depressão, o tema morte está mais presente, seja o medo dela, seja a vontade de que ela aconteça casualmente ou, mais grave, sob a forma de ideação suicida. De qualquer forma, pensa- se na morte e, como não poderia deixar de ser, acompanha sentimentos dolorosos. Essa é uma dor psíquica, naturalmente movida por sentimentos de tristeza, de finitude, de medo, de abandono, de fragilidade e insegurança. Na espécie humana a dor psíquica diante da morte pode ser considerada fisiológica, mas sua duração, intensidade e resolução vão depender, muito provavelmente, de como a pessoa experimentou a vida. Diz um ditado: " teme mais a morte quem mais temeu a vida". Durante a fase de enfrentamento da morte, o paciente é estimulado a profundas reflexões sobre a própria vida; se lhe foi satisfatória sua trajetória de vida, se houve algum desenvolvimento emocional, se pode criar vínculos afetivos fortes e permanentes, se ele pode auxiliar a outros seres humanos. Orientado psicologicamente (cognitivamente) poderá ser possível que, apesar de doloroso, esse momento possa ter um importante e saudável balanço emocional.
Os 5 Estágios da Dor da Morte
A reação psíquica determinada pela experiência com a morte foi descrita por Elisabeth Kubler-Ross como tendo cinco estágios (Berkowitz, 2001):
Primeiro Estágio: negação e isolamento
A Negação e o Isolamento são mecanismos de defesas temporários do Ego contra a dor psíquica diante da morte. A intensidade e duração desses mecanismos de defesa dependem de como a própria pessoa que sofre e as outras pessoas ao seu redor são capazes de lidar com essa dor. Em geral, a Negação e o Isolamento não persistem por muito tempo.
Segundo Estágio: raiva
Por causa da raiva, que surge devido à impossibilidade do Ego manter a Negação e o Isolamento, os relacionamentos se tornam problemáticos e todo o ambiente é hostilizado pela revolta de quem sabe que vai morrer. Junto com a raiva, também surgem sentimentos de revolta, inveja e ressentimento. Nessa fase, a dor psíquica do enfrentamento da morte se manifesta por atitudes agressivas e de revolta; - porque comigo? A revolta pode assumir proporções quase paranóides; "com tanta gente ruim pra morrer porque eu, eu que sempre fiz o bem, sempre trabalhei e fui honesto "... Transformar a dor psíquica em agressão é, mais ou menos, o que acontece em crianças com depressão. É importante, nesse estágio, haver compreensão dos demais sobre a angústia transformada em raiva na pessoa que sente interrompidas suas atividades de vida pela doença ou pela morte.
Terceiro Estágio: barganha
Havendo deixado de lado a Negação e o Isolamento, "percebendo" que a raiva também não resolveu, a pessoa entra no terceiro estágio; a barganha. A maioria dessas barganhas é feita com Deus e, normalmente, mantidas em segredo. Como dificilmente a pessoa tem alguma coisa a oferecer a Deus, além de sua vida, e como Este parece estar tomando-a, quer a pessoa queira ou não, as barganhas assumem mais as características de súplicas. A pessoa implora que Deus aceite sua "oferta" em troca da vida, como por exemplo, sua promessa de uma vida dedicada à igreja, aos pobres, à caridade ... Na realidade, a barganha é uma tentativa de adiamento. Nessa fase o paciente se mantém sereno, reflexivo e dócil (não se pode barganhar com Deus, ao mesmo tempo em que se hostiliza pessoas).
Quarto Estágio: depressão
A Depressão aparece quando o paciente toma consciência de sua debilidade física, quando já não consegue negar suas condições de doente, quando as perspectivas da morte são claramente sentidas. Evidentemente, trata-se de uma atitude evolutiva; negar não adiantou, agredir e se revoltar também não, fazer barganhas não resolveu. Surge então um sentimento de grande perda. É o sofrimento e a dor psíquica de quem percebe a realidade nua e crua, como ela é realmente, é a consciência plena de que nascemos e morremos sozinhos. Aqui a depressão assume um quadro clínico mais típico e característico; desânimo, desinteresse, apatia, tristeza, choro, etc.
Quinto Estágio: aceitação
Nesse estágio o paciente já não experimenta o desespero e nem nega sua realidade. Esse é um momento de repouso e serenidade antes da longa viagem. É claro que interessa, à psiquiatria e à medicina melhorar a qualidade da morte (como sempre tentou fazer em relação à qualidade da vida), que o paciente alcance esse estágio de aceitação em paz, com dignidade e bem estar emocional. Assim ocorrendo, o processo até a morte pôde ser experimentado em clima de serenidade por parte do paciente e, pelo lado dos que ficam, de conforto, compreensão e colaboração para com o paciente.
A Medicina Paliativa
Paliativo é a qualidade de aliviar, e é o que mais interessa à pessoa que sofre, portanto, quando se fala Medicina Paliativa não se pretende, de forma alguma, atribuir um sentido pejorativo, minimizado ou frugal ao termo. Devemos ter cuidado quando alguém diz... " esse medicamento é APENAS um paliativo", com intenção clara em atribuir alguma conotação pejorativa. No Brasil a Medicina Paliativa ainda caminha a passos lentos mas, no Reino Unido, onde tudo começou, somando-se com a Austrália, USA e Canadá, existem mais de 6.000 centros de Medicina Paliativa, sendo considerada uma especialidade médica e de grande notoriedade. No Brasil, a atuação da Medicina Paliativa, iniciada em 1983 pela Dra. Míriam Martelete no Hospital das Clinicas de Porto Alegre, é ainda praticamente desconhecida pelos médicos brasileiros. Os Cuidados Paliativos são tipos especiais de cuidados destinados a proporcionar bem estar, conforto e suporte aos pacientes e seus familiares nas fases finais de uma enfermidade terminal. Assim, a Medicina Paliativa procura conseguir que os pacientes desfrutem os dias que lhes restam de forma mais consciente possível, livres da dor e com seus sintomas sob controle. Isso tudo é pretendido para que esses pacientes possam viver seus últimos dias com dignidade, em sua casa ou em algum lugar mais parecido possível, rodeados de pessoas que lhes queiram bem. Na realidade, esse tipo de cuidado pode ser realizado em qualquer local onde o paciente se encontra, seja em sua casa, no hospital, em asilos ou instituições semelhantes, etc. Paliativo é um tipo de cuidado médico e multiprofissional aos pacientes cuja doença não responde aos tratamentos curativos. Para a Medicina Paliativa é primordial o controle da dor, de outros sintomas igualmente sofríveis e, até, dos problemas sociais, psicológicos e espirituais. Os Cuidados Paliativos são interdisciplinares e se ocupam do paciente, da família e do entorno social do paciente. Os Cuidados Paliativos não prolongam a vida, nem tampouco aceleram a morte. Eles somente tentam estar presentes e oferecer conhecimentos médicos e psicológicos suficientes para o suporte físico, emocional e espiritual durante a fase terminal e de agonia do paciente, bem como melhorar a maneira de sua família e amigos lidarem com essa questão. Essa área médica objetiva o alívio, a preparação e, conseqüentemente a melhoria das condições de vida dos pacientes com doenças progressivas e irreversíveis como, por exemplo, crônico-degenerativas, incapacitantes e fatais. Atualmente diz respeito mais aos pacientes com câncer, AIDS, pneumopatias, degenerações neuromotoras, doenças metabólicas, congênitas, doença de Alzeheimer, doença de Parkinson, etc, bem como os politraumatizados com lesões irreversíveis. Uma das maiores dificuldades para a Medicina Paliativa ter desenvoltura próxima à de outras especialidades, pode ser o preconceito universal existente em relação às condutas terminais, mais precisamente, em relação à morte.
A qualidade da Vida e da Morte
Na formação do médico, bem como na formação das especialidades, a morte costuma ser abolida do rol de preocupações clínicas. Dificilmente os médicos perguntam, na anamnese, se o paciente tem medo de morrer, pensa em morrer, pensa em suicídio, ou coisas assim. Aliás, nem sequer é perguntado se o paciente está triste, nem sequer como ele ESTÁ... E isso se deve, provavelmente, à total falta de conhecimento sobre o que fazer com a resposta do paciente. Quanto mais avança o conhecimento médico em todos os campos (farmacologia; terapêutica, anestesia, cirurgia, transplantes de órgãos, fertilização humana, genética, imunologia, medicina nuclear, recursos diagnósticos, etc...), quanto mais se desenvolvem tecnologias aplicadas à medicina, mais o médico se distancia da morte. Os protocolos de procedimentos médicos, as normas administrativas da medicina e os rígidos manuais de conduta acabaram por institucionalizar a morte. É comum vermos em livros-texto uma perfeita descrição de determinado quadro clínico, reconhecidamente irreversível e com desfecho fatal, mas nada se fala dos cuidados finais, da atenção familiar e afetiva que o paciente deveria receber nesse momento. Não, fala-se muito em deixá-lo nos centros de terapia intensiva. É objetivo da Medicina Paliativa é a preocupação com a desinstitucionalização da morte, dando ao paciente a possibilidade de escolher permanecer em casa durante sua agonia. A discussão que pretendemos alimentar é, sobretudo, um protesto contra as condições de vida impostas pela medicina moderna aos doentes terminais, subtraindo deles as opções de um morrer menos sofrível. Pensamos que, intervir no paciente terminal em centros de terapia intensiva, quando não objetiva exclusivamente minimizar sofrimentos, pode refletir sentimento de onipotência da medicina sobre a vida, sobre a vida física, como se ela fosse considerada o bem supremo e absoluto, acima da liberdade e da dignidade. O amor pela vida, quando a toma como um fim em si mesma, se transforma em um culto pela vida. A medicina que se preocupa insensivelmente com as "condições vitais", deixando de lado as "qualidades vitais", promove implicitamente esse culto idólatra à vida. Nessas circunstâncias a medicina interfere na fase terminal como se travasse uma luta a todo custo contra a morte e não, como seria preferível, numa luta em defesa do paciente. A maneira de morrer, portanto, não pode ser excluída, absolutamente, do projeto de vida da pessoa. A maneira de morrer também é uma forma de humanizar a vida no seu ocaso, devolvendo-lhe a dignidade perdida.
O Paciente Terminal
O grande desenvolvimento da Medicina nas últimas décadas do século XX, assim como as melhorias inegáveis nas condições de vida, elevaram a expectativa de vida de 34 anos, no começo do século XX, até quase 80 anos no começo do século XXI. Conseqüente ao aumento da perspectiva de vida e ao envelhecimento progressivo das populações, nas últimas décadas está havendo um aumento gradual na prevalência de algumas doenças crônicas e invalidantes. Os avanços conseguidos no tratamento específico do câncer têm permitido um aumento significativo da sobrevivência e da qualidade de vida desses pacientes. Mesmo assim, estima-se atualmente que 25% das mortes sejam devidas ao câncer. Por outro lado, sem nenhuma relação com o envelhecimento da população, a AIDS grassou tenazmente em nossa sociedade, demandando fortes medidas sanitárias. Aqui também, apesar dos avanços nessa área, continua grande o número anual de pacientes terminais produzidos por essa doença. O estado mórbido que chamamos de Doença Terminal se caracteriza por algumas situações clínicas precisamente definidas, as quais se podem relacionar da seguinte forma:
1. Presencia de uma doença em fase avançada, progressiva e incurável.
2. Falta de possibilidades razoáveis de resposta ao tratamento específico.
3. Presença de numerosos problemas ou sintomas intensos, múltiplos, multifatoriais e alternantes.
4. Grande impacto emocional (no paciente e familiares) relacionado à presença ou possibilidade incontestável da morte.
5. Prognóstico de vida inferior a 6 meses.
Os Pacientes Terminais apresentam peculiaridades próprias que o profissional médico deve conhecer. O controle dos sintomas do estado terminal deve ser abordado não só do ponto de vista farmacológico, senão também, do ponto de vista psicológico, social, familiar, espiritual, etc. Nesses pacientes os sintomas costumam ser devidos a diversos fatores. Podem ser decorrentes da própria doença que levou ao estado terminal, podem ser devidos aos tratamentos médicos fortemente agressivos à saúde, da debilidade física geral ou de causas totalmente alheias à doença grave, entre elas, do estado emocional do paciente. Seja qual for a origem dos sintomas e do quadro geral que o paciente apresenta, é necessário explicar, da melhor forma possível, sobre o que está ocorrendo e sobre as possíveis questões que possam estar preocupando. Também a família deve estar sempre bem informada, especialmente quando os cuidados estiverem a cargo dela ( Sánchez, 2000).
A Família na visão Paliativa
De modo geral, exceto as infelizes exceções, o familiar representa mais do que a simples presença de alguém promovendo cuidados ao paciente. O familiar representa alguém que, independente das possibilidades terapêuticas, pode compreender e realizar com carinho difíceis tarefas como, por exemplo, dar banho, às vezes no leito, dar a medicação nas doses e horários certos, preparar e dar uma alimentação adequada, fazer curativos, etc. É claro que os profissionais contratados para essas tarefas poderão fazê-las melhor, tecnicamente, mas importa muito a maneira e o carinho com que são realizadas. Havendo a qualidade afetiva dos cuidados, outros cuidadores, além da família podem ser envolvidos no Tratamento Paliativo. Um dos propósitos da Medicina Paliativa é orientar a família para que ela seja um bom suporte de auxílio ao paciente terminal, priorizando sempre as condições necessárias para manter o paciente em casa onde, seguramente, terá uma qualidade de vida melhor. Em casa ele estará cercado de carinho e atenção, o que pode minimizar o seu medo de morrer. Para a desejável participação familiar plena devem ser identificados, dentro da dinâmica familiar, os eventuais pontos de conflitos, anteriores e posteriores ao diagnóstico da doença.

Ballone GJ - Lidando com a Morte
In. PsiqWeb Psiquiatria Geral, Internet, 2002
Disponível em <http://sites.uol.com.br/gballone/voce/ postrauma.html>

Idosos são vítimas de maus-tratos mas têm medo de denunciar

Pérola Melissa Vianna Braga

A questão dos maus tratos contra as pessoas idosas é um problema cada vez mais sério em nossa sociedade. Os idosos têm sido vítimas dos mais diversos tipos de violência que vão desde insultos e espancamentos pelos próprios familiares e cuidadores até os maus tratos sofridos em transportes públicos e instituições públicas e privadas que atendem esta população. Mas problema não é novo, desde 1999 esta violência já tem sido estudada e demonstrada das mais diversas formas. Uma pesquisa feita pelo Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (Claves) da Fiocruz entre 1980 e 1998 registrou um aumento das mortes violentas com pessoas com mais de 60 anos e sobretudo na década de 80, estas mortes violentas passaram a representar uma das principais causas de morte de idosos no país. E pior, a partir de 1989, estas mortes assumiram o segundo lugar, perdendo apenas para as doenças do aparelho circulatório. Ocorre que agora contamos com o Estatuto do Idoso que em seu Artigo 4° prevê expressamente: "Nenhum idoso será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos." . E o mais importante, o mesmo artigo determina que é dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso. Portanto, precisamos denunciar a violência, e precisamos denunciar quando há indícios, a sociedade não deve esperar ter certeza de que algo errado acontece, a investigação cabe à autoridade policial e o quanto antes denunciarmos mais rápido pode ser a solução do problema. Segundo o Dr. Oscar Ferraz Gomes, Delegado Titular da Delegacia de Proteção ao idoso da capital de São Paulo, 90% das ocorrências registradas naquela delegacia tratam de abandono material e maus tratos cometidos contra idosos por seus próprios familiares. A situação é escandalosa. O idoso é maltratado pela própria família e por ser dependente dela acaba não denunciando seus agressores. E a dependência pode ser apenas física ou emocional porque muitos lares brasileiros são sustentados exclusivamente por idosos aposentados. Ou seja, o idoso sustenta a família e ainda assim é vitimizado por ela. O idoso tem direito ao respeito e à dignidade e nossa sociedade não pode mais se calar diante de qualquer tipo de violência. Não podemos mais tolerar este comportamento. O idoso deve denunciar, deve procurar ajuda pois tem direito ao respeito, a inviolabilidade de sua integridade física, psíquica e moral e para que este respeito realmente aconteça, é dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Se o idoso não denuncia, nós cidadãos precisamos denunciar! Cada denuncia pode evitar uma morte!
Onde denunciar:
1 - Toda Delegacia de Polícia é obrigada a atender casos de violência contra o idoso. Procure a mais próxima ou procure o Promotor de Justiça de sua cidade;
2 - Use o disque-denúncia se quiser preservar sua identidade: 0800 156315;
3 - Delegacia de Proteção ao Idoso - dentro do Metrô República em São Paulo: (11)3237-0666;
4 - SOS Idoso - Ministério Público - (11)3874-6904
5 - Procure ainda os Conselhos Municipais e Estaduais do Idoso, eles também têm competência para receber denuncias.

Ninguém vive sem mentir

Psicólogos, antropólogos e neurobiólogos confirmam: mentir não é apenas um processo cognitivo complexo, mas também um componente decisivo de nossa competência socia
"Não levantarás falso testemunho", reza o oitavo mandamento. Outrora esculpido em pedra, hoje ele não vale sequer o papel em que é impresso. É, acima de tudo, desrespeitado. Desde que Adão e Eva contaram a primeira mentira da história da Humanidade, o que vale mesmo em nossa espécie é a palavra não cumprida - nisso, psicólogos e sociólogos concordam. Todo ser humano trapaceia, mente e engana; e, diga-se de passagem, faz isso de forma corriqueira, resoluta, refinada e calculista. Você também, aliás! Ah, não? Então você diz com todas as letras ao dono da casa que aquela festa para a qual ele lhe convidou estava um tédio mortal?
É fato científico que engodos e mentiras são nossos companheiros constantes. Em 1997, por exemplo, o psicólogo Gerald Jellison, da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos, ouviu as conversas diárias de 20 pessoas submetidas a uma experiência e analisou as fitas gravadas em busca de inverdades. O resultado é acachapante para os amantes da verdade: do ponto de vista estatístico, mesmo os mais sinceros participantes disseram uma mentira a cada oito minutos. "Em geral, são apenas mentirinhas, mas, de todo modo, são o que são: mentiras", avalia Jellison. Na opinião do psicólogo, procuramos constantemente desculpas para comportamentos que outros poderiam julgar inadequados. Assim, inventamos um engarrafamento como pretexto para um atraso, ainda que, sinceramente, não tivéssemos a menor intenção de ser pontual. Os maiores mentirosos revelados pela pesquisa de Jellison são pessoas com maior número de contatos sociais - vendedores, auxiliares de consultórios médicos, advogados, psicólogos e jornalistas.
"O engodo é componente tão central em nossas vidas que compreender melhor esse fenômeno é algo importante para quase todos os assuntos humanos", sentencia Paul Ekman, diretor do Laboratório de Interação Humana, de San Francisco, e um dos pioneiros na pesquisa da mentira. A fim de aprofundar suas investigações sobre o assunto, neurocientistas reúnem pessoas para que digam inverdades em laboratório, enquanto eles medem a atividade nas diversas regiões cerebrais dos mentirosos. Psicólogos analisam a mímica facial e os gestos, em busca de sinais que denunciem a falácia; estudam também nossa capacidade de detectar mentiras e tentam estabelecer em que momento as crianças aprendem a contar suas primeiras lorotas.
Sem maldade
O mais surpreendente nos resultados dessas pesquisas é que elas retiram, pouco a pouco, o estigma negativo das mentiras. Muitos antropólogos acreditam que esse tão destacado talento humano para artimanhas sutis e embustes astuciosos não constitui absolutamente uma capacidade a se lamentar. Sua origem não seria um pendor para a maldade, mas comporia, antes, elemento decisivo de nossa inteligência social. "Superestima-se o valor moral de se dizer a verdade", escreve, por exemplo, David Nyberg, professor de filosofia e pedagogia na Universidade de Nova York. "Sem o engodo e o despistamento, nossas complexas relações seriam impensáveis".
Uma mentirinha necessária sobre o novo e malogrado penteado de nossa vizinha com certeza presta maior serviço à convivência pacífica que a franqueza sem retoques. Assim como esse pequeno embuste, várias de nossas mentiras resultam sobretudo do desejo de dar uma alegria a nosso semelhante ou de, pelo menos, não o desmascarar ou ofender sem necessidade.
Isso não significa, porém, a total reabilitação de mentirosos clássicos, pois a pesquisa também sabe muito bem que a mentira está a serviço, acima de tudo, do proveito pessoal e da obtenção de alguma vantagem sobre os outros. Por meio do arguto falseamento dos fatos, do fingimento refinado e da cordialidade representada com esperteza, o que o ser humano busca em primeiro lugar é apresentar-se da melhor maneira possível e impor seus próprios interesses. Isso vale sobretudo para os homens, como descobriu o psicólogo Robert Feldman, da Universidade de Massachussetts. Num estudo envolvendo 242 estudantes, as participantes do sexo feminino mentiam em suas conversas com desconhecidos visando sobretudo a proporcionar um maior bem-estar a seus interlocutores. Os colegas do sexo masculino, ao contrário, mostraram-se interessados em promover a própria imagem.
Na opinião dos biólogos da evolução, foi a própria vida social, com suas hierarquias e tramas de relações, que primeiro trouxe ao mundo a mentira deslavada. O falseamento intencional só pôde desenvolver-se em grupos complexos. Até mesmo os chimpanzés, que vivem em bando, são mestres da dissimulação. Valendo-se de truques, engodos e fingimentos, eles lutam por posição hierárquica, comida e parceiros sexuais. E correm algum risco ao fazê-lo. Uma vez flagrada sua trapaça, o preço a pagar é a degradação social.
Quem não deseja ser constantemente enganado precisa ter a capacidade de descobrir com precisão artifícios e enganações alheios. Os antropólogos vêem precisamente na constante corrida entre desmascaramento e aperfeiçoamento da mentira a força motriz que, do ponto de vista filogenético, talvez tenha sido a responsável pelo desenvolvimento da inteligência social. É possível que ela tenha dado origem até mesmo à linguagem verbal. Especialistas mais empedernidos chegam a defender a tese de que o ser humano deve o aumento de seu cérebro à pressão evolucionária por uma capacidade cada vez mais refinada de enganar.
Depõe a favor dessa teoria o fato de, por trás de cada mentira deliberada, haver sempre um feito intelectual brilhante. Sim, pois esconder a verdade - e, em seu lugar, inventar uma história sólida e irrefutável - não apenas demanda muita criatividade como pressupõe a capacidade de se pôr mentalmente na pele dos outros: somente quando consegue contemplar a própria representação a partir do ponto de vista do ludibriado é que o mentiroso pode, à maneira de um diretor teatral, ajustar sua atuação para que ela seja convincente. O poder de imaginar como se é visto pela pessoa enganada, essa capacidade de pensar como o outro, está entre os feitos cognitivos mais característicos do ser humano.
Onde se localiza no cérebro o requisitado departamento de propaganda em causa própria é o que tem pesquisado Daniel Langleben, da Faculdade de Medicina da Pensylvania, Estados Unidos. Ele utiliza ressonância magnética funcional, método que permite identificar a elevação da atividade cerebral com base no aumento da irrigação sangüínea de determinada região. Langleben solicitou a participantes de uma experiência que dissessem inverdades deliberadas. Cada um recebeu uma carta de baralho num envelope fechado; ninguém - nem mesmo o condutor da experiência - sabia qual carta havia sido dada a cada um. Uma vez tendo visto sua carta às escondidas, o participante era posto no tomógrafo, onde um programa de computador exibia-lhe, uma a uma, 36 cartas de baralho, questionando se se tratava da carta certa. Antes disso, porém, Langleben havia solicitado expressamente aos participantes que mentissem: quando a carta certa aparecesse no monitor, exigindo um "sim" como resposta verdadeira, eles deveriam negá-lo. Assim, um dos 36 "nãos" proferidos era com certeza uma mentira - e foi na pista desse "não" específico que os pesquisadores se lançaram.
Flagrante de laboratório
De fato, os cientistas identificaram cada um dos engodos. Em certas regiões do cérebro, a atividade se intensificava de modo significativo sempre que os participantes recorriam à mentira. Chamou a atenção sobretudo a elevação da atividade cerebral em duas regiões específicas: o giro do cíngulo anterior e o córtex pré-frontal.
Ambas regiões auxiliam decisivamente na determinação dos conteúdos da memória que chegam à nossa consciência. O giro do cíngulo dirige a atenção e serve ao controle dos impulsos. No córtex pré-frontal, por outro lado, está sediada a instância inibidora do cérebro. Aí é rechaçado tudo que é irrelevante num dado momento e que, por isso, não deve ser enxergado mentalmente. É o caso, aqui, dos fatos verdadeiros, por exemplo. Langleben explica: "Está claro que, para dizer uma mentira, precisamos reprimir alguma coisa. Essa coisa há de ser, então, a verdade". Aliás, quando os participantes da experiência não foram obrigados a mentir, os pesquisadores não registraram alteração alguma da atividade cerebral. É de se supor, portanto, que a honestidade constitua, por assim dizer, o estado cognitivo normal. Em outras palavras: cada violação do oitavo mandamento exige esforço adicional dos neurônios. O cérebro precisa, antes, impedir que se diga a verdade.
Que mentir e enganar exigem muito mais das células cinzentas é o que confirma um estudo de psicólogos da Universidade de Michigan, Estados Unidos. Eles perguntaram a participantes de sua experiência se conheciam determinadas pessoas e fatos, e então mediram seu tempo de reação. O resultado: quando os participantes admitiam com sinceridade não ter a menor idéia do que ou quem se tratava, pressionavam o botão do "não" em, no máximo, meio segundo. No caso das respostas mentirosas, esse tempo de reação subia para mais de um segundo. Mesmo depois de informados dos pormenores do estudo e dispondo de tempo para "treinar", ainda assim não conseguiram pressionar o botão com maior rapidez.
Embora Langleben esteja procurando decifrar sobretudo os processos neurobiológicos associados ao ato de mentir, ele sabe do potencial que o resultado de suas pesquisas representa. "Como a ressonância magnética funcional mede diretamente a atividade do cérebro, ela é superior à técnica habitual do detector de mentiras". Ekman, por sua vez, ocupa-se há quase duas décadas com a pesquisa de sinais corporais que denunciam um mentiroso. Num de seus experimentos mais conhecidos, esse pesquisador das emoções exibiu a um grupo de futuras enfermeiras um vídeo com imagens de pessoas que haviam sofrido amputação de membros. A tarefa das participantes consistia em convencer um entrevistador que não assistia ao filme de que elas estavam vendo um belo vídeo com paisagens naturais e imagens agradáveis.
Para motivar o grupo de mentirosas por encomenda, Ekman lhes disse que também em seu cotidiano profissional elas com freqüência precisariam ocultar emoções negativas, tais como a consternação e o nojo diante dos pacientes, e que, por isso mesmo, o domínio da dissimulação era uma capacidade importante em seu ofício. Um segundo filme, exibindo bela paisagem costeira e descrito pelas participantes com sinceridade como tal, foi empregado como controle. Ekman filmou as estudantes de enfermagem e analisou sua mímica e linguagem corporal. Fez, então, uma interessante descoberta: nem mesmo as mentirosas mais convincentes foram capazes de ocultar por completo sua verdadeira vida interior - embora só a traíssem por um brevíssimo instante. Essas "microexpressões faciais" duram menos de um quarto de segundo - instantes fugazes nos quais a máscara cai e o semblante revela emoções verdadeiras, tais como repugnância ou embaraço, antes de tornar a ocultá-las com um sorriso. "Nós não pensamos antes de sentir", explica Ekman. "Antes de termos consciência de um sentimento já estampamos no rosto sua expressão". Os pesquisadores identificaram ainda "microgestos", como um leve balançar da cabeça ou chacoalhar dos ombros. Esses movimentos, porém, eram apenas sugeridos, muitas vezes deixando-se reconhecer apenas em câmera lenta.
Cara ou coroa
Essa é possivelmente a razão pela qual quase todos os seres humanos são péssimos detectores de mentiras. A psicóloga americana Bella DePaolo, da Universidade de Virgínia, examinou cerca de cem estudos sobre o desmascaramento da mentira. Seu balanço revela: antes de começar a refletir longamente sobre se alguém está ou não nos enganando, melhor recorrer a um cara ou coroa - nossa porcentagem média de acerto, pouco acima dos 50%, não chega a ser muito mais significativa que a probabilidade oferecida por uma moedinha.
Existe, no entanto, um grupo de pessoas capaz de flagrar mentirosos de modo bem mais confiável. Não, não me refiro a agentes secretos da CIA, mas àquelas pessoas que, em decorrência de uma lesão no hemisfério esquerdo do cérebro, são capazes de compreender palavras isoladas, mas não o sentido de frases inteiras: os chamados afásicos. Um grupo de afásicos caiu na risada certa vez, ao ouvir um discurso do ex- presidente americano Ronald Reagan porque percebeu suas palavras como um engodo. Mais tarde, verificou-se que o político estava de fato dizendo uma inverdade.
Nancy Etcoff e Paul Ekman submeteram essa observação a comprovação científica, exibindo a dez afásicos os vídeos do experimento com as estudantes de enfermagem. Mesmo sem compreender o que estava sendo dito, eles conseguiram diferenciar corretamente a mentira da verdade em 60% dos casos.
Detectores humanos de mentiras
"Os afásicos têm uma experiência de verdadeiro reconhecimento imediato, tão logo ouvem uma mentira", Etcoff esclarece. Quando o condutor do estudo retirou o som, e os afásicos puderam se concentrar apenas na expressão facial das futuras enfermeiras, sua taxa de acertos como detectores humanos de mentiras subiu para quase 65%. "É possível que a linguagem verbal encubra nossas outras capacidades comunicativas, uma vez que, normalmente, a gente só presta atenção ao que está sendo dito, sem atentar para os sinais não-verbais, tais como a expressão facial", supõe a pesquisadora.
"A linguagem foi dada ao homem para que ele ocultasse seus pensamentos", sentenciou no passado o ministro das Relações Exteriores de Napoleão, Charles Maurice de Talleyrand. E, mais que isso: ela parece tão dominante que homens saudáveis têm imensa dificuldade para interpretar sinais no rosto do mentiroso. Mesmo sem o som, os não- afásicos não se saíram melhor no estudo de Etcoff.
É provável, porém, que, por trás dessa cegueira, se oculte uma estratégia de sobrevivência. Numa sociedade mentirosa, o rigor particular para com a verdade traz consigo o perigo da marginalização. Ignorar mentiras e fazer vistas grossas aos engodos são componentes sólidos da comunicação interpessoal - quer isso nos agrade ou não. Quem não conhece muito bem ou não aceita as regras vigentes torna-se impopular. Foi assim que Bella DePaolo descobriu que jovens com muita sensibilidade para perceber mentiras e engodos e incapazes de mantê- los em segredo, foram avaliados tanto pelos colegas como pelos professores como menos hábeis socialmente.
Em oposição a isso, um estudo de Robert Feldman mostrou que adolescentes capazes de mentir de forma bastante convincente, não se deixando apanhar senão raras vezes, desfrutam de particular reconhecimento e sucesso em seu grupo. O psicólogo faz, portanto, uma defesa dos mentirosos: "De certo modo, mentir é um talento social".
Até o papa Paulo IV (1476-1559) reconhecia como é humano violar o oitavo mandamento: "O mundo deseja ser iludido; pois que o seja, então", declarou certa vez o chefe supremo da Igreja Católica. Os pesquisadores da mentira agora confirmam em laboratório essas palavras, e vão além: por trás de cada mentirinha escondem-se processos cognitivos complexos, sem os quais talvez a convivência humana não fosse sequer possível.
Mas e as trapaças premeditadas, de intenção criminosa? Deve-se absolvê- las, agora que se sabe que a mentira é sinal de inteligência social? Certamente não, já que, afinal, trata-se aí de crimes de fato. A despeito da tomografia por ressonância magnética funcional, a ciência não pode nos privar do julgamento moral do mentiroso. Assim como jamais poderá resolver o paradoxo do cretense mentiroso, que, como se sabe, afirmou que todo cretense mente.

Ulrich Kraft é médico e jornalista científico.
Tradução de Sergio Tellaroli

Homoafetividade e o Direito à Diferença

Protegido pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998 - Lei de Direitos Autorais
Texto confeccionado em Jan 1 2005 12:00AM, por (1) Maria Berenice Dias
Atuações e qualificações (1) Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS e Presidente da 7ª Câmara Cível, c
om a competência em Direito de Família. Vice-Presidente Nacional do IBDFam. Pós-graduada e Mestre em Processo Civil pela PUCR. HOMOAFETIVIDADE E O DIREITO À DIFERENÇA

Sumário: 1. Liberdade e igualdade; 2. Direito à sexualidade; 3. Família e afetividade; 4. Homoafetividade; 5. Uniões homoafetivas; 6. Direito à diferença; 7. Uma justiça diferente.

1. Liberdade e igualdade
A regra maior da Constituição brasileira é o respeito à dignidade humana, servindo de norte ao sistema jurídico nacional. A dignidade humana é a versão axiológica da natureza humana.(1) Esse valor importa em dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora de todas as relações jurídicas. Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei, como bem explicita Konrad Hesse: o fundamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do estado de direito.(2)
O Estado Democrático de Direito tem por pressuposto assegurar a dignidade da pessoa humana, conforme expressamente proclama o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Esse compromisso do Estado assenta-se nos princípios da igualdade e da liberdade, sendo consagrados já no preâmbulo da norma maior do ordenamento jurídico. Concede proteção a todos, vedando discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade. Assegura o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...).
O art. 5º da Carta Constitucional, ao elencar os direitos e garantias fundamentais, proclama: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Garante o mesmo dispositivo, modo expresso, o direito à liberdade e à igualdade. Repetitivos são os seus dois primeiros incisos (3) ao enfatizar a igualdade entre o homem e a mulher e vedar que alguém seja obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Mas de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana e à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.
2. Direito à sexualidade
A sexualidade integra a própria condição humana. É um direito humano fundamental que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível. Ninguém pode se realizar como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade de livre orientação sexual. O direito a tratamento igualitário independente da tendência sexual. A sexualidade integra a própria natureza humana e abrange a dignidade humana. Todo ser humano tem o direito de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade. Sem liberdade sexual, o indivíduo não se realiza, tal como ocorre quando lhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.
Aída Kemelmajer de Carlucci comunga do mesmo entendimento. El derecho a la livre determinación de cada uno es considerado hoy un derecho humano. La circunstancia de que no este mencionado en el catálogo que contienen los tratados nacionales e internacionales sobre derechos humanos no significa que no exista. Así como existe un derecho a la livre determinación de los pueblos, existe un derecho a la livre determinación del individuo.(4)
As normas constitucionais que consagram o direito à igualdade proíbem discriminar a conduta afetiva no que respeita à inclinação sexual. A discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui, conforme afirma Roger Raupp Rios, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual.(5) Rejeitar a existência de uniões homossexuais é afastar o princípio insculpido no inciso IV do art. 3º da Constituição Federal: é dever do Estado promover o bem de todos, vedada qualquer discriminação, não importa de que ordem ou tipo. Conforme José Carlos Teixeira Giorgis: A relação entre a proteção da dignidade da pessoa humana e a orientação homossexual é direta, pois o respeito aos traços constitutivos de cada um, sem depender da orientação sexual, é previsto no artigo 1º, inciso 3º, da Constituição, e o Estado Democrático de Direito promete aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades.(6)
A orientação sexual adotada na esfera de privacidade não admite restrições. Qualquer interferência configura afronta à liberdade fundamental, a que faz jus todo ser humano, no que diz com sua condição de vida.
Como todos os segmentos alvos do preconceito e da discriminação social, as relações homossexuais sujeitam-se à deficiência de normação jurídica, sendo deixados à margem da sociedade e à míngua do Direito.
3. Família e afetividade
Segundo os valores culturais e principalmente as influências religiosas dominantes em cada época, a tendência é de engessamento dos vínculos afetivos. No mundo ocidental, tanto o Estado como a Igreja buscam limitar o exercício da sexualidade ao casamento. A Igreja identifica o casamento como um sacramento, e o Estado o nomina de instituição. Acaba sendo regulado não só o casamento, mas a própria postura dos cônjuges. A lei impõe-lhes deveres e assegura direitos de natureza pessoal, além de estabelecer seqüelas de ordem patrimonial.
O casamento inicialmente era indissolúvel. A família tinha um perfil conservador, era uma entidade matrimonializada, patriarcal, patrimonializada, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. O vínculo que nascia da livre vontade dos nubentes era mantido independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, a separação e o divórcio só são deferidos mediante a identificação de um culpado ou quando decorridos determinados prazos. Do mesmo modo, quem não tem motivo para atribuir ao outro a culpa pelo fim do casamento não pode tomar a iniciativa do processo de separação. O estabelecimento de todos esses condicionamentos evidencia a intenção do legislador de punir quem simplesmente não mais quer continuar casado.
A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como verdadeiras famílias revelava a tendência em sacralizar o conceito de casamento. Mesmo inexistindo qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, a sistemática negativa de estender a esses novos arranjos os regramentos do direito familiar, nem ao menos por analogia, mostrava a tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões convencionais. Os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não adquirir visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de marginais, os vínculos afetivos extramatrimoniais nunca foram reconhecidos como família. Primeiro se procurou identificá-los com uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.
Mesmo depois de a Constituição Federal haver albergado no conceito de entidade familiar o que chamou de "união estável", resistiram os juízes em inserir o instituto no âmbito do Direito de Família. Apesar dos protestos da doutrina, as uniões estáveis foram mantidas no campo do Direito das Obrigações. Como bem adverte Paulo Lôbo, não há necessidade de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia sociedade de fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo. E conclui: Os conflitos decorrentes das entidades familiares explícitas ou implícitas devem ser resolvidos à luz do Direito de Família e não do Direito das Obrigações, tanto os direitos pessoais quanto os direitos patrimoniais e os direitos tutelares.(7)
Com o influxo do Direito Constitucional, o Direito de Família foi alvo de uma profunda transformação, que ocasionou uma verdadeira revolução ao banir injustificáveis discriminações. Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito.(8) Foi derrogada toda a legislação que hierarquizava homens e mulheres, bem como eliminadas as diferenciações entre os filhos, além de ter havido o alargamento do conceito de família para além do casamento.
A Constituição Federal, ao outorgar proteção à família, independentemente da celebração do casamento, vincou um novo conceito, o de entidade familiar, albergando vínculos afetivos outros. No entanto, é meramente exemplificativo o enunciado constitucional ao fazer referência expressa somente à união estável entre um homem e uma mulher e às relações de um dos ascendentes com sua prole. O caput do art. 226 é cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, conforme afirma Paulo Luiz Lôbo.(9)
Pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela celebração do matrimônio. Não há como afirmar que o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, ao mencionar a união estável formada entre um homem e uma mulher, reconheceu somente essa convivência como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-la em casamento. Em nenhum momento é dito não existirem entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos do casal para merecer a proteção do Estado é fazer distinção odiosa,(10) postura nitidamente discriminatória, que contraria o princípio da igualdade, ignorando a vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo.
A proibição de se conceder tratamento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional. Como preceitua o § 2º do art. 5º da CF,(11) são recepcionados por nosso ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais objeto de referendo. Entre tais normatizações, a ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos, seja com base no princípio de respeito à dignidade humana, seja pelo princípio da igualdade.(12)
A orientação que alguém imprime na esfera da sua vida privada não admite restrições. Pior do que o não-reconhecimento é a discriminação, como lembra Sérgio Resende de Barros, referindo que, do direito ao afeto humano, decorre o direito de repelir o desafeto, tal como, do direito ao exercício sexual, deflui o direito ao celibato.(13)
Desimporta a identificação do sexo do par, se igual ou diferente, para se emprestarem efeitos jurídicos aos vínculos afetivos, no âmbito do Direito de Família. Atendidos os requisitos legais para a configuração da união estável, necessário que sejam conferidos direitos e impostas obrigações independentemente da identidade ou diversidade de sexo dos conviventes.
A homossexualidade existe, é um fato que se impõe, estando a merecer a tutela jurídica. O estigma do preconceito não pode fazer com que um fato social não se sujeite a efeitos jurídicos. É no mínimo perverso impor às uniões homossexuais a mesma trilha percorrida pela doutrina e pela jurisprudência com relação às relações entre um homem e uma mulher fora do casamento, até o alargamento do conceito de família por meio da constitucionalização da união estável.
4. Homoafetividade
A sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões da sexualidade. Nítida é a rejeição à livre orientação sexual. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é marcada pelo estigma do preconceito. Por se afastar dos padrões de comportamento convencional, é renegada à marginalidade. Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa nos padrões, é tido como imoral ou amoral, sem buscar-se a identificação de suas origens orgânicas, sociais ou comportamentais. (14)
Tenta-se excluir a homossexualidade do mundo do Direito, mas imperativa sua inclusão no rol dos direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo que se insere em todas as suas categorias, pois ao mesmo tempo é direito individual, social e difuso.
O direito à homoafetividade, além de estar amparado pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de discriminações injustas, também se alberga sob o teto da liberdade de expressão. Como garantia do exercício da liberdade individual, igualmente cabe ser incluído entre os direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a integridade física e psíquica. Acresce ainda lembrar que a segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada é a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa humana.(15)
Qualquer discriminação baseada na orientação sexual configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princípio maior consagrado pela Constituição Federal. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições a direitos, o que fortalece estigmas sociais que acabam por causar sentimento de rejeição e sofrimentos. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a um ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo (na qual, sem sombra de dúvida, inclui-se a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana.(16)
O núcleo do atual sistema jurídico é o respeito à dignidade humana, que se sustenta nos princípios da liberdade e da igualdade. A proibição da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois diz com a conduta afetiva e o direito à orientação sexual. A identificação do sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída a orientação sexual. Uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação.(17)
O exercício da sexualidade, a prática da conjunção carnal ou a identidade sexual não distinguem os vínculos afetivos. A identidade ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamento. Assim, melhor é falar em relações homoafetivas ou heteroafetivas do que em relações homossexuais ou heterossexuais.
5. Uniões homoafetivas
Impondo a Constituição Federal respeito à dignidade humana, são alvo de proteção os relacionamentos afetivos independente da identificação do sexo do par: se formados por homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Ainda que, quase intuitivamente, se conceitue a família como uma relação interpessoal entre um homem e uma mulher tendo por base o afeto, necessário reconhecer que há relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, são cunhados também por um elo de afetividade.
Preconceitos de ordem moral não podem levar à omissão do Estado. Nem a ausência de leis nem o conservadorismo do Judiciário servem de justificativa para negar direitos aos vínculos afetivos que não têm a diferença de sexo como pressuposto. É absolutamente discriminatório afastar a possibilidade de reconhecimento das uniões estáveis homossexuais. São relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, gerando o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar regramento jurídico.
Reconhecer como juridicamente impossíveis ações que tenham por fundamento uniões homossexuais é relegar situações existentes à invisibilidade. Enseja a consagração de injustiças, uma vez que chancela o enriquecimento sem causa. Nada justifica, por exemplo, deferir uma herança a parentes distantes em prejuízo de quem muitas vezes dedicou uma vida a outrem e participou da formação do acervo patrimonial. Descabe ao juiz julgar as opções de vida das partes. Deve- se cingir à apreciação das questões que lhe são postas, centrando-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um resultado justo. As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. Incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos, relegando à marginalidade determinadas relações sociais, pois a mais cruel conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças.(18)
Descabido estabelecer a distinção de sexos como pressuposto para o reconhecimento da união estável. Dita desequiparação, arbitrária e aleatória, é exigência nitidamente discriminatória. O próprio legislador constituinte nominou de entidade familiar merecedora da proteção do Estado também a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Diante dessa abertura conceitual, nem o matrimônio nem a diferenciação dos sexos ou a capacidade procriativa servem de elemento identificador da família. Por conseqüência, não há como ver como entidade familiar somente a união estável entre pessoas de sexos opostos.
Não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois sua falta não enseja sua desconstituição. Como filhos ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, não se justifica deixar de abrigar, sob o conceito de família, as relações homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é uma forma cruel de excluir direitos.
Passando duas pessoas, ligadas por um vínculo afetivo, a manter uma relação duradoura, pública e contínua, como se casados fossem, formando um núcleo familiar à semelhança do casamento, mister identificá-la como geradora de efeitos jurídicos independentemente do sexo a que pertencem.
Em face do silêncio do constituinte e da omissão do legislador, deve o juiz cumprir a lei e atender à determinação constante do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e do art. 126 do Código de Processo Civil. Na lacuna da lei, ou seja, na falta de normatização, precisa o juiz se valer da analogia, costumes e princípios gerais de direito. Nada diferencia tais uniões de modo a impedir que sejam definidas como família. Enquanto não existir um regramento legal específico, mister, no mínimo, a aplicação analógica das regras jurídicas que regulam as relações que têm o afeto por causa: o casamento e as uniões estáveis. A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo destinado originariamente a situação diversa, ou seja, comunidade formada por um homem e uma mulher. A semelhança aqui presente, autorizadora da analogia, seria a ausência de vínculos formais e a presença substancial de uma comunidade de vida afetiva e sexual duradoura e permanente entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre entre os sexos opostos.(19)
A aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária de se socorrerem das leis que regem a união estável ou o casamento tem levado singelamente ao reconhecimento da união homossexual como mera sociedade de fato. Sob o fundamento de se evitar enriquecimento injustificado, invoca-se o Direito das Obrigações, o que acaba subtraindo a possibilidade da concessão de um leque de direitos que só existem na esfera do Direito de Família. Presentes os requisitos legais: vida em comum, coabitação, laços afetivos, não se pode deixar de conceder às uniões homoafetivas os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características.
O tratamento diferenciado a situações análogas acaba por gerar profundas injustiças. Como bem adverte Rodrigo da Cunha Pereira, em nome de uma moral sexual dita civilizatória, muita injustiça tem sido cometida. O Direito, como instrumento ideológico e de poder, em nome da moral e dos bons costumes, já excluiu muitos do laço social. (20)
As relações sociais são dinâmicas. Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, com conceitos fixados pelo conservadorismo do passado e encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado pela história da sociedade humana. Necessário é pensar com institutos jurídicos modernos, que estejam à altura da sociedade dos dias atuais.
Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei.
Não é ignorando a realidade, deixando-a à margem da sociedade e fora do Direito, que irá desaparecer a homossexualidade. Impositivo o reconhecimento de uma união estável entre pessoas do mesmo sexo. Como diz Teixeira Giorgis: De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, em que aquela se inclui.(21)
Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de afeto, o mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais. Bem questiona Paulo Luiz Lôbo: Afinal, que ´sociedade de fato´ mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?(22)
Não se pode falar em homossexualidade sem pensar em afeto. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, as mudanças de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém tem o direito de fechar os olhos e assumir uma postura preconceituosa ou discriminatória, para não enxergar essa nova realidade. Os aplicadores do Direito não podem ser fonte de grandes injustiças. Descabe confundir as questões jurídicas com as questões morais e religiosas. É necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.
6. Direito à diferença
As normas legais precisam adequar-se aos princípios e garantias consagradas pela Carta Política, que retrata a vontade geral do povo. O núcleo do sistema jurídico, que sustenta a própria razão de ser do Estado, deve garantir muito mais liberdades do que promover invasões ilegítimas na esfera pessoal do cidadão.
O fato de não haver regra legal a regular alguma situação posta em julgamento não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, e nem impede que se extraiam efeitos. A falta de previsão específica nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência de direitos. O silêncio do legislador precisa ser suprido pelo juiz, que cria a lei para o caso que se apresenta a julgamento. Na omissão legal, deve o juiz se socorrer da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito.
Ainda que o preconceito faça com que os relacionamentos homossexuais recebam o repúdio de segmentos conservadores, o movimento libertário que transformou a sociedade acabou por mudar o próprio conceito de família. A homossexualidade existe, sempre existiu, e cabe à Justiça emprestar-lhe visibilidade. Em nada se diferenciam os vínculos heterossexuais e os homossexuais que tenham o afeto como elemento estruturante.
O legislador intimida-se na hora de assegurar direitos às minorias alvo da exclusão social. A omissão da lei dificulta o reconhecimento de direitos, sobretudo frente a situações que se afastam de determinados padrões convencionais, o que faz crescer a responsabilidade da Justiça. Preconceitos e posições pessoais não podem levar o juiz a fazer da sentença meio de punir comportamentos que se afastam dos padrões por ele aceitos como normais. Igualmente não cabe invocar o silêncio da lei para negar direitos a quem vive fora do modelo imposto pela moral conservadora, mas que não agride a ordem social e não traz prejuízo a ninguém.
7. Uma justiça diferente
As uniões de pessoas com a mesma identidade sexual, ainda que sem lei, foram à Justiça reivindicar direitos. Mais uma vez o Judiciário foi chamado a exercer a função criadora do direito. O caminho que lhes foi imposto já é conhecido. As uniões homossexuais tiveram que trilhar o mesmo iter imposto às uniões extramatrimoniais. Em face da resistência de ver a afetividade nas relações homossexuais, foram elas relegadas ao campo obrigacional e rotuladas de sociedades de fato, a dar ensejo a mera partilha dos bens amealhados durante o período de convívio. Ainda assim, era necessária a prova da efetiva participação na sua aquisição.(23)
O receio de comprometer o sacralizado conceito do casamento, limitado à idéia de procriação e, por conseqüência, da heterossexualidade do casal, não permitia que se inserissem as uniões homoafetivas no âmbito do Direito de Família. Havia dificuldade de reconhecer que a convivência está centrada no vínculo de afeto, o que impedia fazer analogia dessas uniões com o instituto da união estável. Afastada a identidade familiar, nada mais era concedido além de uma pretensa repartição do patrimônio comum. Alimentos, pretensão sucessória, eram rejeitados sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.
As uniões homossexuais, quando reconhecida sua existência, ficavam relegadas ao Direito das Obrigações. Chamadas de sociedades de fato, limitava-se a Justiça a conferir-lhes seqüelas de ordem patrimonial. Logrando um dos sócios provar sua efetiva participação na aquisição de bens amealhados durante o período de convívio, era determinada a partição do patrimônio, operando-se verdadeira divisão de lucros. Reconhecidas como relações de caráter comercial, as controvérsias eram julgadas pelas varas cíveis.
A mudança começou na Justiça gaúcha, que, ao definir a competência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas, as inseriu no âmbito do Direito de Família, como entidades familiares. Cabe sinalar que o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul possui uma estrutura diferenciada. A divisão de competência por matérias existe também no segundo grau de jurisdição, entre os órgãos colegiados do Tribunal de Justiça. Essa peculiaridade evidencia o enorme significado do deslocamento das ações sobre as uniões de pessoas do mesmo sexo das varas cíveis para os juízos de família. Esse, com certeza, foi o primeiro grande marco que ensejou a mudança de orientação da jurisprudência rio-grandense.(24) A definição da competência das varas de família para o julgamento das ações envolvendo as uniões homossexuais provocou o envio de todas as demandas que tramitavam nos juizados cíveis para a jurisdição de família. Também os recursos migraram para as câmaras que detêm competência para apreciar essa matéria.
Trazendo a ação como fundamento jurídico as normas de Direito de Família, a tendência era o indeferimento da petição inicial. Reconhecida a impossibilidade jurídica do pedido, era decretada a carência de ação. O processo era extinto em seu nascedouro, por ser considerado impossível o pedido do autor. Essa foi a decisão proferida em ação de petição de herança, cujo recurso,(25) invocando os princípios constitucionais que vedam a discriminação entre os sexos, por unanimidade de votos, reformou a sentença. Como a inicial descrevia a existência de um vínculo familiar foi afirmada a possibilidade jurídica do pedido, e determinado o prosseguimento da ação. Essa decisão, de forma clara, sinalizou o caminho para a inserção, no âmbito do Direito de Família, das uniões homoafetivas como entidade familiar, invocando a vedação constitucional de discriminação em razão do sexo.
A primeira decisão da Justiça brasileira que deferiu herança ao parceiro do mesmo sexo também é da justiça especializada do Rio Grande do Sul.(26) A mudança de rumo foi de enorme repercussão, pois retirou o vínculo afetivo homossexual do Direito das Obrigações, em que era visto como simples negócio, um relacionamento com exclusivo objetivo comercial e com fins meramente lucrativos. Esse equivocado enquadramento evidenciava postura conservadora e discriminatória, pois não conseguia ver a existência de um vínculo afetivo na sua origem.
Como o Direito de Família se justifica pela afetividade, fazer analogia com esse ramo do Direito significa reconhecer a semelhança entre as relações familiares e as homossexuais. Assim, pela primeira vez, a Justiça emprestou relevância ao afeto como elemento de identificação para reconhecer a natureza familiar das uniões homoafetivas. O Relator, Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, em longo e erudito voto, invocando os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade, concluiu que o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a sua afirmação. Na esteira dessa decisão, encorajaram-se outros tribunais e, com freqüência, são noticiados novos julgamentos adotando posicionamento idêntico.
A possibilidade de ser reconhecida como relação jurídica, em sede de medida cautelar de justificação, a convivência de um casal de mulheres para prevenir futuras controvérsias foi outro significativo avanço. Havendo sido indeferida a inicial, foi provido o recurso,(27) sob o fundamento de que a prova da convivência efetiva seria da maior importância na eventualidade de ruptura da vida em comum, com vista à apuração de resultado patrimonial.
Em outra demanda, foi afirmada a possibilidade do uso da ação de carga eficacial meramente declaratória da existência da relação homossexual. Mesmo não havendo controvérsia entre as autoras sobre a existência da relação, restou reconhecido o interesse de agir com finalidade de prevenir futuras discussões.(28)
A ausência de herdeiros sucessíveis levou o companheiro sobrevivente a disputar a herança que, na iminência de ser declarada vacante, seria recolhida ao município. Em sede de embargos infringentes, foram deferidos direitos sucessórios ao companheiro pelo voto de Minerva do Vice-Presidente do Tribunal.(29)
Recente julgamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,(30) por decisão unânime, determinou a partilha de bens, reconhecendo como união estável a convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, por quase cinco anos, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência entre as partes.
Merece ser louvada a coragem de ousar quando se ultrapassam os tabus que rondam o tema da sexualidade e se rompe o preconceito que persegue as entidades familiares homoafetivas. Houve um verdadeiro enfrentamento a toda uma cultura discriminatória e uma oposição à jurisprudência ainda apegada a um conceito conservador de família. Essa nova orientação mostra que o Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz justiça. Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças, afastando-se o Estado do dever de cumprir com sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade.
É um marco significativo a inserção das relações homoafetivas no âmbito do Direito de Família como entidades familiares. Na medida em que se consolida a orientação jurisprudencial, emprestando efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo, começa a se alargar o espectro de direitos reconhecidos aos parceiros quando do desfazimento dos vínculos de convivência. Inúmeras outras decisões despontam no panorama nacional a mostrar a necessidade de se cristalizar uma orientação que motive o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem da Justiça.
Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que deve suprir a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados de preconceitos ou restrições morais de ordem pessoal.
Não mais cabe deixar de arrostar a realidade do mundo de hoje.
Necessário ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de família os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito de Família consegue assegurar.
O caminho está aberto, e imperioso que os juízes cumpram com sua verdadeira missão, que é fazer justiça. Acima de tudo, precisam ter sensibilidade para tratar de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam ser julgadas com mais sensibilidade e menos preconceito. Uma maior atenção à justiça, à igualdade e ao humanismo deve presidir as decisões judiciais.
Há muito já caiu a venda que tapava os olhos da Justiça. O símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para o reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada. Não mais se concebe conviver com a exclusão e com o preconceito.
A Justiça não é cega nem surda. Precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social e os ouvidos atentos para ouvir o clamor dos que por ela esperam. Mister que os juízes deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados, e não punidos.
(1) BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Horizonte:

Igual - Desigual


Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinhos são iguais.
Todos filmes norte-americanos são iguais
Todos best sellers são iguais
Todos campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais
Todas as mulheres que andam na moda são iguais
Todas experiências de sexo são iguais.
Todos sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais e todos,
todos os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos rompimentos
A morte é igualíssima
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho ímpar.

Carlos Drummond de Andrade

A sexualidade e a pessoa com deficiência

Desde os primórdios da civilização, tanto a sexualidade como a erotização e as suas disfunções foram bastante exploradas; prova disto são os relatos históricos gregos, romanos, de Sodoma, de Pompéia etc. Michel Foucault lembra que na Grécia antiga, por exemplo, a sexualidade se inscrevia como uma questão de cidadania. Havia um controle sobre as condutas sexuais do amor grego, não porque contrariava a natureza biológica do homem, mas porque podia contrariar o homem, enquanto cidadão. Na sexualidade grega, pois, o importante é como o sujeito vai dirigir sua atividade sexual. Embora seja necessário respeitar as leis, os costumes, os deuses, os pais, a questão não passa pelo lícito e o ilícito, o permitido e o proibido, o normal e o anormal, mas pela prudência, pela reflexão, pela maneira com que controla seus atos sexuais. Tanto era dessa forma, que a pederastia era aceita como parte da educação para a constituição do cidadão. O pedagogo iniciava a criança sexualmente e o que tornava a relação pederasta válida e aceitável naquela sociedade é que o homem adulto já terminou sua "formação", enquanto o rapaz ainda não atingiu seu status de cidadão, precisa de ajuda, de conselhos e apoio. Ou seja, a supremacia do mais velho, a experiência de vida sobre o mais jovem, justifica a pedofilia. Enfim, na ética grega, mais importante do que o indivíduo se relacionar sexualmente com um ou outro sexo, era o domínio sobre si, a relação consigo mesmo, uma ética do indivíduo e não do sujeito. Outro exemplo que nos ajuda a pensar como a sexualidade foi percebida ao longo do tempo de forma distinta da nossa é que, com o advento da Idade Média, passou-se a perceber um discurso unitário sobre o sexo, pautado nos "pecados da carne", da volúpia, do sacrilégio. Pecados que precisavam ser confessados para serem perdoados. Através do resgate de documentos da época, sabe-se que na maioria das comunidades francesas do século XV, por exemplo, a prostituição era não apenas tolerada, mas existiam até mesmo locais próprios para a prática, a prostibula publica, que podiam pertencer a própria comunidade, ou eram dependentes da autoridade senhorial. Apesar da existência desses chamados "bordéis públicos", existiam ainda os "bordéis particulares", distribuídos desigualmente pela cidade e mantidos por "alcoviteiras", estalajadeiras e proxenetas que tinham à sua disposição algumas "moças levianas". Mesmo com toda essa pretensa liberação, pouco ou quase nada se falava sobre a sexualidade; existem inúmeros sinais acerca dessa sensualidade medieval, mas esta não era pensada, não era discutida - era apenas "vivida". E, quando a sexualidade era debatida, se fazia de forma a enxotá-la do meio social, na forma do deslocamento dos bordéis para locais cada vez menos habitados, para se preservar a "moral da família e da igreja". O discurso cristão foi aos poucos sendo rompido e/ou diversificado pelo discurso científico, que não deixou, no entanto, de aproveitar do referido discurso o que lhe interessava. Ou seja, o discurso unitário da Idade Média em torno da sexualidade foi aos poucos se fragmentando nas diversas ciências surgidas, cada qual discutindo de acordo com o seu "olhar" teórico, sua lógica própria de sujeição, procurando dar respostas para questões que até então não passavam de mais um fato do cotidiano. Até o início do século XVII, pois, a sexualidade ainda era franca e as práticas não procuravam o segredo; para Michel Foucault, "tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade". Eis que surge o regime vitoriano e todas as suas conseqüências; época em que a sexualidade é encerrada, é velada no interior da família conjugal, tendo como única função, a de reproduzir. Apesar da pretensa tolerância que vigorou até meados do século XVII, o tema sexualidade sempre foi rodeado por uma névoa de tabus e preconceitos que impedia, muitas vezes, de ser debatido nas cátedras e, quando isso acontecia, a religião permeava todo o debate, guiando o discurso e dificultando análises por ventura mais acuradas. Esse embate entre os intelectuais e o clero durou toda a Idade Média e continuou pela Idade Moderna; somente a partir do século XIX acontece uma reviravolta de costumes - principalmente na Europa, em que começa a surgir uma imensa preocupação com o sexo. Na Europa do século XIX, a sexualidade passa a ser tratada como um assunto político, a ser regulado pelas instituições governamentais que constroem um discurso a ser seguido por toda a sociedade - tendo como finalidade proibir e/ou controlar certos atos. Foucault, vendo a sexualidade como uma construção histórica e cultural lembra que esta era a época em que a família e as primeiras instituições escolares colocaram-se em estado de alerta, a fim de vigiar a descoberta do indivíduo com o seu próprio corpo, além, claro deste indivíduo com outros indivíduos. Somente a partir do início do século XIX é que a sexualidade foi estudada de forma científica com os trabalhos dos sexologistas Havellock Ellis (1859-1939) e Alfred Kinsey (1894-1956) e dos fisiologistas William Masters (1916) e Virginia Johnson (1924), sem falar da revolução empreendida por Freud. E, em relação à sexualidade, o que mais se ouve falar em nossos dias é que há uma imensa repressão sobre o sexo. A literatura é farta. Os marxistas nos informam que no advento da sociedade capitalista houve e há uma repressão sobre o sexo, sobre o corpo do homem, para sujeitá-lo em prol de uma classe sobre a outra. A classe hegemônica, calcada na apropriação dos meios de produção, domina a classe desfavorecida, o proletariado, que tem como "bem capital" sua força de trabalho para negociar, estando esta última sempre em desvantagem em relação à primeira, detentora do poder econômico. O sexo aparece como mais um instrumento de repressão, daquela sobre a última. Sigmund Freud explicita a idéia da repressão sexual colocada em um discurso que, à sua época e à sua maneira, revolucionou tudo o que os "eugenistas" diziam e sabiam sobre sexualidade. Freud afirmou a existência de uma sexualidade infantil, argumentando também que a libido não é a responsável pelas doenças e distúrbios físicos e psíquicos, que têm como causa a repressão sexual. Pretendia inicialmente com a psicanálise, colaborar na descoberta das causas desta repressão, visando eliminá-la. No entanto, posteriormente, concluiu que a sociedade civilizatória depende da repressão sexual, devido ao caráter agressivo e destrutivo das pulsões sexuais conflitantes e que, embora fosse necessário diminuir a ignorância e os preconceitos sexuais, não seria possível, para o bem da humanidade e para a ordem social, eliminar toda a repressão. Além disso, o século passado vai trazer um conjunto de contribuições que levaram à reflexão sobre sexualidade. Por exemplo, a partir da década de 1980, o surgimento da AIDS obrigou as instituições e a própria família a uma mudança de postura com relação ao tema sexualidade; o risco da infecção pelo HIV e a gravidez não planejada entre adolescentes fizeram com que o sexo saísse do interior das casas e das pessoas e ganhasse status de discussão coletiva. O que fica evidenciado durante todo esse percurso histórico é a forma velada e preconceituosa, cercada de tabus com que a sexualidade humana foi tratada, (entenda-se sexualidade dos ditos normais), daí então o que não dizer da sexualidade da pessoa com deficiência! Estas pessoas tiveram que travar uma luta bem maior na conquista e garantia de seus direitos, já que vieram de um período de exclusão e negação para só agora passarem a gradualmente serem incluídas na sociedade. Através das dezenas de lutas e construção de documentos legais a pessoa com deficiência tornou-se portadora de direitos mais especificamente ao longo de sua história, a partir da preocupação com a educação de especiais, e veio a se tornar debatida, redirecionada e difundida principalmente a partir do surgimento do termo Educação Inclusiva que passou a ser reconhecido mundialmente a partir da Declaração de Salamanca, em 1994, reafirmando o compromisso com a efetivação de uma Educação para Todos, reconhecendo a urgência e necessidade de todas as pessoas com necessidades educacionais especiais serem inseridas dentro do sistema regular de ensino. A partir desse olhar lançado de forma diferente para esses seres humanos com potencialidades e limitações, com vontades e desejos tendo, indiscutivelmente o direito de expressar sua sexualidade passa- se automaticamente para a discussão e compreensão deste aspecto da pessoa com necessidades especiais. Falar pois desta remete-nos automaticamente, ao conceito de sexualidade humana em sua forma mais ampla, entendendo-se, inicialmente, o ser humano como um ser bio-psico- social e religioso, inserido em sua cultura, essa sexualidade tão reprimida, desfocada ou negada passa a ser observada e a ser admitida. Sendo a sexualidade um componente fundamental do ser humano, e estando presente em todas as fases da vida a partir da sua concepção, para um desenvolvimento satisfatório desta, é imprescindível o reconhecimento do próprio corpo, associando o tocar, o olhar, o sentir ao afetivo, daí é importância das pessoas que cuidam de pessoas com deficiência de ensinarem e mostrarem para a própria independência os cuidados com o corpo a partir da higiene pessoal. A sexualidade da pessoa com deficiência, quando estimulada, bem conduzida e encarada como parte integrante do ser, possibilita a este uma melhoria na auto-estima e desenvolvimento da afetividade,possibilita o bem-estar e aumenta a capacidade nas relações interpessoais.

Breve História da Educação Inclusiva

Para falarmos de Educação Inclusiva é importante destacar o caminho percorrido pelas pessoas com necessidades especiais, ressaltando as lutas da humanidade pelo direito a ter direitos já que dentre todas as minorias essas pessoas vieram de um período de exclusão, seguido da segregação, institucionalização, e integração, para só agora passarem a gradualmente serem incluídas na sociedade. Do ponto de vista da legalidade, desde 1948, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pode-se afirmar que a educação de especiais passou a ser sinalizada, passando a pessoa com necessidades especiais a se tornar portadora de direitos e, sobretudo do direito à igualdade. Vários outros documentos foram sendo construídos através de lutas sociais, sobretudo pelo direito à diversidade e à igualdade de condições para todos, porém, diante de uma sociedade vítima de todo um processo de exclusão ao longo de sua história, a educação de especiais veio a se tornar debatida, redirecionada e difundida somente a partir do surgimento do termo Educação Inclusiva que passou a ser reconhecido mundialmente a partir da Declaração de Salamanca, em 1994, reafirmando o compromisso com a efetivação de uma Educação para Todos, reconhecendo a urgência e necessidade de todas as pessoas com necessidades educacionais especiais serem inseridas dentro do sistema regular de ensino. A necessidade da educação especial é alicerçada na importância da educação para todos. Para isto ela deve desenvolver-se de forma que atenda as necessidades individuais de cada um com uma educação de qualidade através da diversificação dos serviços educacionais, não esquecendo de visualizar sempre as potencialidades e limitações de cada indivíduo dentro de um contexto de diversidade. Ainda ao falarmos de Educação Inclusiva queremos dizer de uma Educação que, sobretudo vise desenvolver o ser humano em sua plenitude, baseando-se no respeito à diferença, e à diversidade, onde a pessoa com necessidades especiais possa desfrutar do direito de ser tratado com igualdade respeitando sua limitação e, sobretudo baseado na capacidade ilimitada que possui todo ser humano de desenvolver-se. Seria incompatível falar de inclusão no Sistema Educacional Regular de Ensino se deixássemos de salientar a importância da Teoria de Gardner - Teoria das Inteligências Múltiplas - que foi reconhecida devido aos progressos da Neurociência, e veio contribuir e reafirmar o potencial de toda pessoa, bastando para isto ser estimulado e deixando para trás a visão de pontuar as dificuldades do período da integração. desta forma avançando na visualização do indivíduo na sua integralidade. Também seria igualmente incompatível falar de Inclusão esquecendo da heterogeneidade de Wygotsky. "Wygotsky que produziu sua obra nos anos 20 e 30 deste século e poderia ser atualmente um cognitivista, propõe uma abordagem unificadora das dimensões afetiva e cognitiva do funcionamento psicológico que muito se aproxima das tendências contemporâneas." afirma Marta Kohl de Oliveira em seu livro O Problema da Afetividade de Wygotsky (pág. 75). Apesar das garantias da legislação, o movimento da inclusão apenas começou, haja vista que existem inúmeras barreiras ao longo deste processo que levarão anos a serem destruídas e certamente dependerão desde a efetivação das políticas públicas garantindo o direito de cada um, partindo das barreiras arquitetônicas até as barreiras atitudinais que certamente estas serão, ainda por algum tempo, o maior obstáculo na luta pela igualdade. . No entanto, diante de um tema tão sério, polêmico e complexo sabemos que existe a necessidade cada vez mais urgente de se estudar, debater, pesquisar e principalmente sensibilizar a sociedade da importância de quebrarmos as barreiras construídas ao longo de todo um processo de segregação da humanidade, erguidas e fortalecidas pelo preconceito, maior responsável pela discriminação e enfraquecimento das minorias. Fica, portanto evidenciado a importância da educação em promover a desmistificação do preconceito através da sensibilização da sociedade, levando-a a reflexão e a rever valores internalizados, baseado em mudanças de atitude e em suporte teórico sólido.

MONOGRAFIA

O abuso sexual na visão do educador: uma reflexão a partir da rede municipal de ensino de Picuí/PB

INTRODUÇÃO

Nas sociedades modernas, a sexualidade ganhou uma evidente centralidade, porém falar de temas a ela relacionados exige cautela e, sobretudo, conhecimento de concepções históricas sedimentadas no homem moderno, justificando assim, a visão de Michel Foucault, quando diz que a sexualidade seria um dispositivo histórico. Nessa perspectiva, este trabalho é formulado a partir da minha atuação em oito escolas de ensino infantil e fundamental da rede pública municipal de Picuí – Paraíba. Inserida nesse espaço escolar há quatro anos e sete meses, como profissional da educação, na função de psicóloga, me defrontei com situações que, inicialmente, não fiquei à vontade para responder.
O trabalho desenvolvido pela equipe pedagógica da Secretaria Municipal de Educação, formada por mim, mais quatro supervisoras de ensino e uma orientadora educacional, trouxe à tona alguns questionamentos acerca da visão da sexualidade ora discutido no âmbito escolar daquele município, sobretudo porque o trabalho realizado me permite visualizar todo o processo e me relacionar com a clientela estudantil dos 3 aos 16 anos, além de toda a equipe das escolas (diretores, professores, auxiliares e demais funcionários).
Os discursos e a forma de lidar com a sexualidade das crianças me impulsionaram a discutir teoricamente essa questão. Para isso se tornar possível, ingressei no Curso de Especialização em Educação – Psicopedagogia – da Universidade Estadual da Paraíba, e no decorrer desse processo de conhecimento, pude definir com maior clareza as diretrizes desse estudo que agora apresento. Após uma revisão bibliográfica, do estudo do material coletado e das experiências vivenciadas nas escolas, percebi que o tema necessitava de uma maior delimitação, já que se trata de um assunto bastante amplo e controverso. Nesse período, alguns casos acompanhados durante três anos na presidência do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente de Picuí, deram-me a certeza da escolha do tema – os dados colhidos apontaram para a necessidade de discutir questões referentes ao abuso sexual sofrido por crianças, já que tal problemática está inserida com freqüência no interior das escolas. Vale ressaltar que, no decorrer da discussão, serão citados alguns casos acompanhados, situações do cotidiano das escolas e várias falas de educadores; porém, todos os personagens terão os dados de identificação alterados e serão utilizados nomes fictícios, na intenção de preservar o anonimato das pessoas envolvidas. Dentre as várias situações, o primeiro caso é o de Marina, que agora apresento por ser emblemático para a discussão em tela.
Abril de 2001 – sala da 1ª série da Escola Municipal de Ensino Fundamental “Felipe Tiago Gomes”. Observo o comportamento de Marina e noto que esta menina, de aproximadamente oito anos de idade, se contorce sem parar, num movimento ritmado que, após alguns minutos, noto ser um ato masturbatório. Desconfiei que aquele comportamento pudesse dar pistas de um caso de abuso sexual; procurei os professores da escola em busca de informações e as palavras veladas me mostraram o quanto é difícil abordar o tema também com estes profissionais. Início do ano letivo de 2002; Marina repete a 1ª série mais uma vez; volto a procurar a direção da escola para conversar acerca da história desta criança, mas observo que o discurso dos professores aponta para a dificuldade em abordar assuntos relacionados à sexualidade, levando-os, muitas vezes, a camuflar ou falar de forma preconceituosa. Assim, passei a pesquisar o contexto familiar daquela criança e, após acompanhá-la durante alguns meses, pude constatar que, realmente, Marina havia sido vítima de abuso sexual por parte de um irmão.
Após essa situação, pude perceber que a questão da sexualidade naquele ambiente, ao contrário de outros assuntos, é pouco observada e muito menos discutida; e, se comentada, é feita de forma moralizadora e estereotipada, o que dificulta todo o trabalho. É importante ressaltar que não se trata de “não falar do assunto”, mas a forma como se fala. Portanto, considerando que o professor lida diariamente e diretamente com a criança, sendo responsável também pela sua formação integral, e observado o nível de conhecimento dessa população acerca da sua concepção e suas formas de lidar com o tema, achamos conveniente e oportuno, neste momento, trabalhar com o professor e não com o aluno sobre o discurso acerca do tema abuso sexual no ambiente escolar.
Assim posto, o presente trabalho monográfico tem por objetivo analisar a dificuldade enfrentada pelos profissionais da educação de Picuí relativa à problemática do abuso sexual, objetivando colher mais informações que possibilitem, posteriormente, oferecer-lhes conhecimentos básicos acerca do abuso sexual e fornecer subsídios que sirvam como instrumento de reflexão sem, no entanto, encerrar a discussão, contribuindo, assim, para o exercício profissional das equipes pedagógicas nas salas de aula deste Município.
Considerando que essas observações preliminares contribuíram para a definição exata e para uma melhor compreensão da proposta e dos caminhos percorridos, para compor este estudo dividiremos em 03 capítulos, nos quais falaremos sobre temas pertinentes à questão do abuso sexual e da percepção do educador acerca dessa problemática. Dessa forma, o primeiro capítulo apresenta um histórico acerca da sexualidade, destacando a sexualidade infantil, o papel da família e da escola na formação da identidade sexual do indivíduo. O segundo capítulo aborda os aspectos históricos e conceituais do abuso sexual contra crianças, além de destacar como tal tema é visto pela legislação brasileira em vigor. Aqui, se lança mão de pesquisas de alguns estudiosos nessa área, além de citar algumas situações de abuso sexual ocorridas no município onde a pesquisa foi realizada. O terceiro capítulo apresenta as questões metodológicas, enfocando o tema, a partir da fala do educador. Encerrando o trabalho, apresentam-se as considerações finais.

CAPÍTULO 1 - DESVENDANDO A SEXUALIDADE

BREVE HISTÓRICO DA SEXUALIDADE OCIDENTAL

Mesmo que o objetivo deste estudo seja focado na discussão do abuso sexual e, mais que isto, na forma como os educadores/as percebem e lidam com o tema em suas ações cotidianas, considero necessário inserir o tema numa discussão mais ampla, qual seja, a sexualidade. Será importante perceber como o assunto vem sendo tratado ao longo da história para daí passarmos a discutir suas conexões mais específicas para este trabalho.
Para qualquer iniciado em história, é visível ser a sexualidade tão antiga quanto o próprio homem. Desde os primórdios da civilização, tanto a sexualidade como a erotização e as suas disfunções foram bastante exploradas; prova disto são os relatos históricos gregos, romanos, de Sodoma, de Pompéia etc. Michel Foucault (1990b, p.38) lembra que na Grécia antiga, por exemplo, a sexualidade se inscrevia como uma questão de cidadania. Havia um controle sobre as condutas sexuais do amor grego, não porque contrariava a natureza biológica do homem, mas porque podia contrariar o homem, enquanto cidadão. Na sexualidade grega, pois, o importante é como o sujeito vai dirigir sua atividade sexual. Embora seja necessário respeitar as leis, os costumes, os deuses, os pais, a questão não passa pelo lícito e o ilícito, o permitido e o proibido, o normal e o anormal, mas pela prudência, pela reflexão, pela maneira com que controla seus atos sexuais. Passa pelo uso dos prazeres, o chresis aphrodision (1990b, p.40). Tanto era dessa forma, que a pederastia era aceita como parte da educação para a constituição do cidadão. O pedagogo iniciava a criança sexualmente e o que tornava a relação pederasta válida e aceitável naquela sociedade é que o homem adulto já terminou sua “formação”, enquanto o rapaz ainda não atingiu seu status de cidadão, precisa de ajuda, de conselhos e apoio. Ou seja, a supremacia do mais velho, a experiência de vida sobre o mais jovem, justifica a pedofilia. Enfim, na ética grega, mais importante do que o indivíduo se relacionar sexualmente com um ou outro sexo, era o domínio sobre si, a relação consigo mesmo, uma ética do indivíduo e não do sujeito.
Outro exemplo que nos ajuda a pensar como a sexualidade foi percebida ao longo do tempo de forma distinta da nossa é que, com o advento da Idade Média, passou-se a perceber um discurso unitário sobre o sexo, pautado nos "pecados da carne", da volúpia, do sacrilégio. Pecados que precisavam ser confessados para serem perdoados. Através do resgate de documentos da época, sabe-se que na maioria das comunidades francesas do século XV, por exemplo, a prostituição era não apenas tolerada, mas existiam até mesmo locais próprios para a prática, a prostibula publica, que podiam pertencer a própria comunidade, ou eram dependentes da autoridade senhorial. Apesar da existência desses chamados “bordéis públicos”, existiam ainda os “bordéis particulares”, distribuídos desigualmente pela cidade e mantidos por “alcoviteiras”, estalajadeiras e proxenetas que tinham à sua disposição algumas “moças levianas”.
Porém, o que mais chama a atenção nesse recorte histórico não é a presença da prostituta; o que realmente surpreende é a coexistência desses ambientes no espaço político urbano, e a tolerância da sociedade com esses bordéis. Jacques Rossiaud (apud ARIES, Philippe; BEJIN, André, p.95) lembra que
Quanto aos limites espaciais, parecem bem amplos: prostibula ou zonas não são locais fechados. As prostitutas públicas “ganham sua aventura” nas ruas, nas tavernas, na praça ou às portas das igrejas. As autoridades, manifestamente, não procuram encerrá-las e dão prova de um laxismo idêntico em relação à prostituição tolerada.

Neste ambiente medieval, as representações da família, no dizer de Rossiaud, dominam todos os espaços públicos, isto é, os monumentos, os locais de devoção e, como não poderia deixar de ser, as reuniões com os vizinhos. Em relação ao casamento, “[...] apesar de um abrandamento cuja amplitude seria necessário poder medir, é sempre uma ‘vitória social’” (apud ARIES, Philippe; BEJIN, André, p.100). Mas era a época do casamento por conveniência, do casamento “arranjado”, e não raro aconteciam as escapadelas noturnas.
Mesmo com toda essa pretensa liberação, pouco ou quase nada se falava sobre a sexualidade; existem inúmeros sinais acerca dessa sensualidade medieval, mas esta não era pensada, não era discutida – era apenas “vivida”. E, quando a sexualidade era debatida, se fazia de forma a enxotá-la do meio social, na forma do deslocamento dos bordéis para locais cada vez menos habitados, para se preservar a “moral da família e da igreja”. O discurso cristão foi aos poucos sendo rompido e/ou diversificado pelo discurso científico, que não deixou, no entanto, de aproveitar do referido discurso o que lhe interessava. Ou seja, o discurso unitário da Idade Média em torno da sexualidade foi aos poucos se fragmentando nas diversas ciências surgidas, cada qual discutindo de acordo com o seu "olhar" teórico, sua lógica própria de sujeição, procurando dar respostas para questões que até então não passavam de mais um fato do cotidiano.
Até o início do século XVII, pois, a sexualidade ainda era franca e as práticas não procuravam o segredo; para Michel Foucault, “tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade” (1990a, p.09). Eis que surge o regime vitoriano e todas as suas conseqüências; época em que a sexualidade é encerrada, é velada no interior da família conjugal, tendo como única função, a de reproduzir.
Apesar da pretensa tolerância que vigorou até meados do século XVII, o tema sexualidade sempre foi rodeado por uma névoa de tabus e preconceitos que impedia, muitas vezes, de ser debatido nas cátedras e, quando isso acontecia, a religião permeava todo o debate, guiando o discurso e dificultando análises por ventura mais acuradas. Esse embate entre os intelectuais e o clero durou toda a Idade Média e continuou pela Idade Moderna; somente a partir do século XIX acontece uma reviravolta de costumes – principalmente na Europa, em que começa a surgir uma imensa preocupação com o sexo. Nas palavras de Rosa Maria Bueno Fischer, “[...] o discurso da sexualidade passa a ser um discurso sobre a vitalidade do corpo e sobre a maximização da vida” (1996, p. 76).
Na Europa do século XIX, a sexualidade passa a ser tratada como um assunto político, a ser regulado pelas instituições governamentais que constroem um discurso a ser seguido por toda a sociedade – tendo como finalidade proibir e/ou controlar certos atos. Foucault lembra que esta era a época em que a família e as primeiras instituições escolares colocaram-se em estado de alerta, a fim de vigiar a descoberta do indivíduo com o seu próprio corpo, além, claro deste indivíduo com outros indivíduos. Assim, segundo Fischer,
Para tanto, não só a fala dos pedagogos multiplica saberes sobre a sexualidade dos mais jovens, por exemplo, como os espaços e os rituais escolares da Europa, a partir do século XIX [...], aparentemente mudos, são a própria manifestação de um discurso interminável sobre sexualidade (1996, p. 76).

Assim, esse é o contexto no qual o sexo é colocado em discurso, é alvo de poder e saber através de estratégias que aparecem sob a forma de histerização do corpo da mulher; à mulher são atribuídos dois papéis - o de mãe (mulher procriadora) e o seu negativo, o de histérica (mulher nervosa); e a pedagogização do sexo da criança: inocente em relação ao que vem a ser uma sexualidade normal, a criança é preocupação de todos, pois sujeita a se dedicar a atividades sexuais indevidas, por isso, perigosas. Ainda segundo observações de Foucault, na preocupação com o sexo, no século XIX, existiam quatro figuras que se esboçam como objetos privilegiados de saber, alvos e pontos de fixação dos empreendimentos do saber: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano, o adulto perverso.
Destarte, se tudo isso já não bastasse, foi nessa época que teve início no aperfeiçoamento das pesquisas em anatomia, no âmbito da medicina; já no meio jurídico, acontece a multiplicação de formas de fazer com que o indivíduo fale de si, deixando o registro de sua confissão – e de sua perversidade. Estava aberto o campo para a psicanálise. O dispositivo de sexualidade tornou possível a idéia central da psicanálise - o sexo como simbolização. Foucault nos informa que a psicanálise surge como uma teoria da mútua implicação essencial entre a lei e o desejo e, ao mesmo tempo, técnica para eliminar os efeitos da interdição lá onde o seu rigor a torne patogênica.
Somente a partir do início do século XIX é que a sexualidade foi estudada de forma científica com os trabalhos dos sexologistas Havellock Ellis (1859-1939) e Alfred Kinsey (1894-1956) e dos fisiologistas William Masters (1916) e Virginia Johnson (1924), sem falar da revolução empreendida por Freud. E, em relação à sexualidade, o que mais se ouve falar em nossos dias é que há uma imensa repressão sobre o sexo. A literatura é farta. Os marxistas nos informam que no advento da sociedade capitalista houve e há uma repressão sobre o sexo, sobre o corpo do homem, para sujeitá-lo em prol de uma classe sobre a outra. A classe hegemônica, calcada na apropriação dos meios de produção, domina a classe desfavorecida, o proletariado, que tem como "bem capital" sua força de trabalho para negociar, estando esta última sempre em desvantagem em relação à primeira, detentora do poder econômico. O sexo aparece como mais um instrumento de repressão, daquela sobre a última.
Marilena Chauí mantém a idéia de que a sociedade atual é repressora em relação ao sexo, refutando a teoria de Foucault sobre a não "repressão sexual":
Embora tenhamos insistido no fato de que a repressão sexual não se realiza apenas pelo conjunto explícito de interdições e censuras, mas sobretudo pelas práticas, idéias e instituições que regulamentam o permitido, mantivemos presente a idéia da repressão como um processo de mutilação, desvalorização e controle da sexualidade como pecaminosa, imoral, viciosa (1985, p.73).
Sigmund Freud explicita a idéia da repressão sexual colocada em um discurso que, à sua época e à sua maneira, revolucionou tudo o que os "eugenistas" diziam e sabiam sobre sexualidade. Freud afirmou a existência de uma sexualidade infantil, argumentando também que a libido não é a responsável pelas doenças e distúrbios físicos e psíquicos, que têm como causa a repressão sexual. Pretendia inicialmente com a psicanálise, colaborar na descoberta das causas desta repressão, visando eliminá-la. No entanto, posteriormente, concluiu que a sociedade civilizatória depende da repressão sexual, devido ao caráter agressivo e destrutivo das pulsões sexuais conflitantes e que, embora fosse necessário diminuir a ignorância e os preconceitos sexuais, não seria possível, para o bem da humanidade e para a ordem social, eliminar toda a repressão.
Além disso, o século passado vai trazer um conjunto de contribuições que levarão à reflexão sobre sexualidade. Por exemplo, a partir da década de 1980, o surgimento da AIDS obrigou as instituições e a própria família a uma mudança de postura com relação ao tema sexualidade; o risco da infecção pelo HIV e a gravidez não planejada entre adolescentes fizeram com que o sexo saísse do interior das casas e das pessoas e ganhasse status de discussão coletiva.