sexta-feira, junho 08, 2007

BREVE HISTÓRICO DA SEXUALIDADE OCIDENTAL

Mesmo que o objetivo deste estudo seja focado na discussão do abuso sexual e, mais que isto, na forma como os educadores/as percebem e lidam com o tema em suas ações cotidianas, considero necessário inserir o tema numa discussão mais ampla, qual seja, a sexualidade. Será importante perceber como o assunto vem sendo tratado ao longo da história para daí passarmos a discutir suas conexões mais específicas para este trabalho.
Para qualquer iniciado em história, é visível ser a sexualidade tão antiga quanto o próprio homem. Desde os primórdios da civilização, tanto a sexualidade como a erotização e as suas disfunções foram bastante exploradas; prova disto são os relatos históricos gregos, romanos, de Sodoma, de Pompéia etc. Michel Foucault (1990b, p.38) lembra que na Grécia antiga, por exemplo, a sexualidade se inscrevia como uma questão de cidadania. Havia um controle sobre as condutas sexuais do amor grego, não porque contrariava a natureza biológica do homem, mas porque podia contrariar o homem, enquanto cidadão. Na sexualidade grega, pois, o importante é como o sujeito vai dirigir sua atividade sexual. Embora seja necessário respeitar as leis, os costumes, os deuses, os pais, a questão não passa pelo lícito e o ilícito, o permitido e o proibido, o normal e o anormal, mas pela prudência, pela reflexão, pela maneira com que controla seus atos sexuais. Passa pelo uso dos prazeres, o chresis aphrodision (1990b, p.40). Tanto era dessa forma, que a pederastia era aceita como parte da educação para a constituição do cidadão. O pedagogo iniciava a criança sexualmente e o que tornava a relação pederasta válida e aceitável naquela sociedade é que o homem adulto já terminou sua “formação”, enquanto o rapaz ainda não atingiu seu status de cidadão, precisa de ajuda, de conselhos e apoio. Ou seja, a supremacia do mais velho, a experiência de vida sobre o mais jovem, justifica a pedofilia. Enfim, na ética grega, mais importante do que o indivíduo se relacionar sexualmente com um ou outro sexo, era o domínio sobre si, a relação consigo mesmo, uma ética do indivíduo e não do sujeito.
Outro exemplo que nos ajuda a pensar como a sexualidade foi percebida ao longo do tempo de forma distinta da nossa é que, com o advento da Idade Média, passou-se a perceber um discurso unitário sobre o sexo, pautado nos "pecados da carne", da volúpia, do sacrilégio. Pecados que precisavam ser confessados para serem perdoados. Através do resgate de documentos da época, sabe-se que na maioria das comunidades francesas do século XV, por exemplo, a prostituição era não apenas tolerada, mas existiam até mesmo locais próprios para a prática, a prostibula publica, que podiam pertencer a própria comunidade, ou eram dependentes da autoridade senhorial. Apesar da existência desses chamados “bordéis públicos”, existiam ainda os “bordéis particulares”, distribuídos desigualmente pela cidade e mantidos por “alcoviteiras”, estalajadeiras e proxenetas que tinham à sua disposição algumas “moças levianas”.
Porém, o que mais chama a atenção nesse recorte histórico não é a presença da prostituta; o que realmente surpreende é a coexistência desses ambientes no espaço político urbano, e a tolerância da sociedade com esses bordéis. Jacques Rossiaud (apud ARIES, Philippe; BEJIN, André, p.95) lembra que
Quanto aos limites espaciais, parecem bem amplos: prostibula ou zonas não são locais fechados. As prostitutas públicas “ganham sua aventura” nas ruas, nas tavernas, na praça ou às portas das igrejas. As autoridades, manifestamente, não procuram encerrá-las e dão prova de um laxismo idêntico em relação à prostituição tolerada.

Neste ambiente medieval, as representações da família, no dizer de Rossiaud, dominam todos os espaços públicos, isto é, os monumentos, os locais de devoção e, como não poderia deixar de ser, as reuniões com os vizinhos. Em relação ao casamento, “[...] apesar de um abrandamento cuja amplitude seria necessário poder medir, é sempre uma ‘vitória social’” (apud ARIES, Philippe; BEJIN, André, p.100). Mas era a época do casamento por conveniência, do casamento “arranjado”, e não raro aconteciam as escapadelas noturnas.
Mesmo com toda essa pretensa liberação, pouco ou quase nada se falava sobre a sexualidade; existem inúmeros sinais acerca dessa sensualidade medieval, mas esta não era pensada, não era discutida – era apenas “vivida”. E, quando a sexualidade era debatida, se fazia de forma a enxotá-la do meio social, na forma do deslocamento dos bordéis para locais cada vez menos habitados, para se preservar a “moral da família e da igreja”. O discurso cristão foi aos poucos sendo rompido e/ou diversificado pelo discurso científico, que não deixou, no entanto, de aproveitar do referido discurso o que lhe interessava. Ou seja, o discurso unitário da Idade Média em torno da sexualidade foi aos poucos se fragmentando nas diversas ciências surgidas, cada qual discutindo de acordo com o seu "olhar" teórico, sua lógica própria de sujeição, procurando dar respostas para questões que até então não passavam de mais um fato do cotidiano.
Até o início do século XVII, pois, a sexualidade ainda era franca e as práticas não procuravam o segredo; para Michel Foucault, “tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade” (1990a, p.09). Eis que surge o regime vitoriano e todas as suas conseqüências; época em que a sexualidade é encerrada, é velada no interior da família conjugal, tendo como única função, a de reproduzir.
Apesar da pretensa tolerância que vigorou até meados do século XVII, o tema sexualidade sempre foi rodeado por uma névoa de tabus e preconceitos que impedia, muitas vezes, de ser debatido nas cátedras e, quando isso acontecia, a religião permeava todo o debate, guiando o discurso e dificultando análises por ventura mais acuradas. Esse embate entre os intelectuais e o clero durou toda a Idade Média e continuou pela Idade Moderna; somente a partir do século XIX acontece uma reviravolta de costumes – principalmente na Europa, em que começa a surgir uma imensa preocupação com o sexo. Nas palavras de Rosa Maria Bueno Fischer, “[...] o discurso da sexualidade passa a ser um discurso sobre a vitalidade do corpo e sobre a maximização da vida” (1996, p. 76).
Na Europa do século XIX, a sexualidade passa a ser tratada como um assunto político, a ser regulado pelas instituições governamentais que constroem um discurso a ser seguido por toda a sociedade – tendo como finalidade proibir e/ou controlar certos atos. Foucault lembra que esta era a época em que a família e as primeiras instituições escolares colocaram-se em estado de alerta, a fim de vigiar a descoberta do indivíduo com o seu próprio corpo, além, claro deste indivíduo com outros indivíduos. Assim, segundo Fischer,
Para tanto, não só a fala dos pedagogos multiplica saberes sobre a sexualidade dos mais jovens, por exemplo, como os espaços e os rituais escolares da Europa, a partir do século XIX [...], aparentemente mudos, são a própria manifestação de um discurso interminável sobre sexualidade (1996, p. 76).

Assim, esse é o contexto no qual o sexo é colocado em discurso, é alvo de poder e saber através de estratégias que aparecem sob a forma de histerização do corpo da mulher; à mulher são atribuídos dois papéis - o de mãe (mulher procriadora) e o seu negativo, o de histérica (mulher nervosa); e a pedagogização do sexo da criança: inocente em relação ao que vem a ser uma sexualidade normal, a criança é preocupação de todos, pois sujeita a se dedicar a atividades sexuais indevidas, por isso, perigosas. Ainda segundo observações de Foucault, na preocupação com o sexo, no século XIX, existiam quatro figuras que se esboçam como objetos privilegiados de saber, alvos e pontos de fixação dos empreendimentos do saber: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano, o adulto perverso.
Destarte, se tudo isso já não bastasse, foi nessa época que teve início no aperfeiçoamento das pesquisas em anatomia, no âmbito da medicina; já no meio jurídico, acontece a multiplicação de formas de fazer com que o indivíduo fale de si, deixando o registro de sua confissão – e de sua perversidade. Estava aberto o campo para a psicanálise. O dispositivo de sexualidade tornou possível a idéia central da psicanálise - o sexo como simbolização. Foucault nos informa que a psicanálise surge como uma teoria da mútua implicação essencial entre a lei e o desejo e, ao mesmo tempo, técnica para eliminar os efeitos da interdição lá onde o seu rigor a torne patogênica.
Somente a partir do início do século XIX é que a sexualidade foi estudada de forma científica com os trabalhos dos sexologistas Havellock Ellis (1859-1939) e Alfred Kinsey (1894-1956) e dos fisiologistas William Masters (1916) e Virginia Johnson (1924), sem falar da revolução empreendida por Freud. E, em relação à sexualidade, o que mais se ouve falar em nossos dias é que há uma imensa repressão sobre o sexo. A literatura é farta. Os marxistas nos informam que no advento da sociedade capitalista houve e há uma repressão sobre o sexo, sobre o corpo do homem, para sujeitá-lo em prol de uma classe sobre a outra. A classe hegemônica, calcada na apropriação dos meios de produção, domina a classe desfavorecida, o proletariado, que tem como "bem capital" sua força de trabalho para negociar, estando esta última sempre em desvantagem em relação à primeira, detentora do poder econômico. O sexo aparece como mais um instrumento de repressão, daquela sobre a última.
Marilena Chauí mantém a idéia de que a sociedade atual é repressora em relação ao sexo, refutando a teoria de Foucault sobre a não "repressão sexual":
Embora tenhamos insistido no fato de que a repressão sexual não se realiza apenas pelo conjunto explícito de interdições e censuras, mas sobretudo pelas práticas, idéias e instituições que regulamentam o permitido, mantivemos presente a idéia da repressão como um processo de mutilação, desvalorização e controle da sexualidade como pecaminosa, imoral, viciosa (1985, p.73).
Sigmund Freud explicita a idéia da repressão sexual colocada em um discurso que, à sua época e à sua maneira, revolucionou tudo o que os "eugenistas" diziam e sabiam sobre sexualidade. Freud afirmou a existência de uma sexualidade infantil, argumentando também que a libido não é a responsável pelas doenças e distúrbios físicos e psíquicos, que têm como causa a repressão sexual. Pretendia inicialmente com a psicanálise, colaborar na descoberta das causas desta repressão, visando eliminá-la. No entanto, posteriormente, concluiu que a sociedade civilizatória depende da repressão sexual, devido ao caráter agressivo e destrutivo das pulsões sexuais conflitantes e que, embora fosse necessário diminuir a ignorância e os preconceitos sexuais, não seria possível, para o bem da humanidade e para a ordem social, eliminar toda a repressão.
Além disso, o século passado vai trazer um conjunto de contribuições que levarão à reflexão sobre sexualidade. Por exemplo, a partir da década de 1980, o surgimento da AIDS obrigou as instituições e a própria família a uma mudança de postura com relação ao tema sexualidade; o risco da infecção pelo HIV e a gravidez não planejada entre adolescentes fizeram com que o sexo saísse do interior das casas e das pessoas e ganhasse status de discussão coletiva.

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