sexta-feira, junho 08, 2007

Identificando o abuso sexual

Desde o mês de maio de 1999, quando iniciei o trabalho de orientação psicológica através da Secretaria Municipal de Saúde (Programa de Saúde Mental), o serviço é desenvolvido uma vez por semana, e recebi, nesse período, cerca de mil pessoas. O trabalho é desenvolvido na sala de atendimento em Psicologia, onde atendo crianças, adolescentes e adultos, nos turnos da manhã e tarde, sendo esta clientela oriunda das zonas rural e urbana do município. O caso a seguir é complexo e marcou por ser o primeiro de abuso sexual atendido naquela unidade de saúde.
Sérgio, 25 anos, solteiro, procurou aquele serviço com queixa inicial de depressão. Sentia-se triste, desanimado, tinha insônia, crises de choro e idéias suicidas. A intervenção com esse paciente envolveu 15 sessões, sendo que a primeira foi desenvolvida através de uma avaliação, na qual, além das verbalizações, teve como instrumento utilizado a entrevista, que foi voltada para compreender sua história, auxiliá-lo no seu estado atual e ajudá-lo a expressar seus sentimentos e pensamentos.
O objetivo, naquele momento, era melhorar o quadro ora existente, no sentido de, estabilizado o emocional, podermos investigar as causas da depressão. Através da utilização de testes e desenhos intercalados com conversas acerca de sua vida familiar, seus relacionamentos amorosos e assuntos do dia-a-dia, Sérgio apresentou, já na quarta sessão, uma sensível melhora, passando a comportar-se de forma alegre e brincalhona, motivado a trabalhar questões mais íntimas e, com isso, estabelecendo um vínculo forte com a terapeuta. Na quinta sessão, num discurso que ora demonstrava culpa, medo e constrangimento, ora prazer, Sérgio revelou ter sofrido abuso sexual por parte de um tio, no período dos seis aos dez anos de idade, aproximadamente. “No início, ele só me pedia pra que eu o masturbasse, dizia que aquilo era certo, depois passou a me penetrar, eu tinha medo e sentia dor, mas ele ameaçava me bater se eu revelasse pra alguém aquele segredo. Com o tempo, passei a gostar, acho que depois já me insinuava pra ele”.
Passamos a analisar as verbalizações e, juntos, começamos a solucionar problemas e a compreender determinados comportamentos seus, através de técnicas de relaxamento e de aprofundamento. Enfrentamos a depressão com saídas de casa, passeios e leitura adequada, além do uso de um anti-depressivo, sob orientação de um médico a quem buscamos ajuda.
Durante todo o tratamento, conversamos sobre a possibilidade de denunciarmos seu agressor, o que Sérgio foi terminantemente contra. “Já passou e hoje eu tenho é pena dele, nada iria resolver”. Ele relatou ter contado sua história para uma tia (irmã do agressor), que ficou bastante constrangida, chorou muito, porém, apenas decidiu afastar-se um pouco do agressor, mas também não concorda em denunciá-lo.
Sérgio ainda me procura esporadicamente, na intenção de discutir sua vida sexual. Segundo ele, mantém atividades sexuais com mulheres, porém só realiza-se sexualmente com homens; mesmo assim, não consegue assumir essa condição.
Há cerca de um ano e meio, fui procurada por uma prima de Sérgio que, inicialmente, queixava-se de sentir-se insatisfeita sexualmente. “Há três anos tenho um namorado e quero um envolvimento mais sério; no entanto, não consigo me sentir à vontade. Quando ele começa a me acariciar, lembro das mãos nojentas do meu tio pegando nos meus seios e passando as mãos pelo meu corpo, pedindo pra que eu não dissesse a ninguém, que aquilo era certo entre tio e sobrinha”. O relato era sobre o abuso sexual sofrido aos nove anos de idade. Durante o acompanhamento, concluí que se tratava da mesma pessoa que abusou Sérgio. Existe desconfiança da parte do serviço de Psicologia com relação a outro caso, que também envolve outra prima de Sérgio, que também pode ser vítima do mesmo agressor; porém, o assunto é camuflado pela família.
Nenhuma das vítimas tem conhecimento da violência sofrida pela outra, nem tampouco que trata-se do mesmo agressor. Percebe-se, portanto, assim como no caso de Marina, mencionado na introdução, mais uma vez o caráter secreto do abuso, o que confirma a opinião de grande parte dos estudiosos, no sentido de que o abusador, na maioria das vezes, se encontra no seio da família, o que dissemos no início deste capítulo.
A dificuldade de identificação do abuso sexual é complicada pela culpa, medo e vergonha da criança em revelar a violência. Na maioria dos casos, o fato de não aparecer nenhuma evidência física definitiva ou manifestações comportamentais específicas imediatas que comprovem o abuso, faz com que uma porcentagem muito maior de casos acabem por não ser desvendados.
Somente através de avaliações detalhadas, feitas por profissionais capacitados, torna-se possível intervir na situação, denunciar e dar apoio à vítima. Dessa forma, para que isso ocorra, é necessário que os profissionais, no caso, da escola, tenham conhecimento de instrumentos legais de apoio e garantia dos direitos da criança. A esse tema, damos enfoque no tópico a seguir.

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